sábado, 12 de fevereiro de 2022

Um cult movie de terror que saiu da periferia para o mundo



“É a vida o tudo  e a morte o nada ou a vida é o nada, e a morte, tudo”  com este pressuposto o cineasta José Mojica Marins concebeu junto com Adenora de Sá Porto o roteiro do filme Esta noite encarnarei o teu cadáver, considerado um cult movie reconhecido internacionalmente. A história foi construída  a partir de uma sinopse simples: o  coveiro Zé do Caixão, que buscava de forma obsessiva encontrar uma mulher ideal, capaz de gerar o filho perfeito, e tenta, com a ajuda do fiel criado conseguir este objetivo, para isso sequestra seis belas jovens, que acabam submetidas a sessões de tortura e flagelação concebíveis no mundo da ficção ou fora dos limites da razão.

Tudo começa quando Zé do Caixão (José Mojica Marins), dono de uma funerária, é preso e absolvido de dois crimes depois de encontrado junto a dois corpos em decomposição. E assim, em liberdade, ele volta à sua cidade com o projeto de achar a mulher ideal para consagrar a única verdade da vida: a imortalidade do sangue. Mas nem tudo é maldade no filme, pois Zé do Caixão salva um menino que brincava de cabra cega de ser atropelado  e ainda ameaça ao motorista desastrado, que poderia ter matado um inocente.

Para Zé do Caixão, “meu sangue precisa encontrar aquela que o imortalizará” e o importante neste processo que pairava na sua cachola é que só as crianças são inocentes, por isso sequestra seis mulheres para tentar gerar o homem puro e de uma raça imortal, isso num pais cujo povo continua a morrer ignorante, supersticioso,” uma verdade que precisa ser aceita mesmo que tenhamos de chorar lágrimas de sangue”, o que custou ao cineasta dissabores com a censura.

Ele oferece às mulheres a fortuna e a imortalidade, mas elas não sabem o que o destino reserva às que não forem escolhidas. No teste de fogo, ele coloca baratas e aranhas nos quatros em que as jovens dormem e ri sadicamente, quando elas se assustam: “um pequeno susto para medir a coragem de vocês”. Outra mulher, ele manda esperar no seu quarto e  fala da sua preocupação para que a beleza das mulheres seja ultrajada pelos rigores do tempo “por isso promete matá-las” de forma antecipada.

Uma das vitimas ele dá de presente para seu fiel escudeiro, Bruno (José Lobo), o corcunda, e decide ficar com apenas uma das mulheres, deixando as outras quatro entre cobras e serpentes que cuidariam do seu destino final. Zé do Caixão é amaldiçoado por uma da moças, mas para ele, a morte delas não é um sacrifício, porque o amor fragiliza o homem e corrompe a mente. Depois da decisão, manda Bruno, simplesmente limpar a sujeira fazendo a assepsia do lugar dos crimes.

Nesse interim, ele interrompe  a festa de noivado de Laura (Tina Wholers) filha de um coronel. Ela lhe diz que pretende ser de seu sequestrador e que quer ter com ele um filho perfeito, sendo considerada por Zé do Caixão como uma mulher superior. Na sua estratégia, ele também mata o filho do coronel, irmão  de Laura e joga a culpa no Truncador (Antônio Francari), que acaba conseguindo fugir da cadeia.

A Laura , Ze do Caixão confessa que matou o seu irmão e que ela, por ser uma mulher superior será a mãe do seu filho. Mas ele também descobre que entre uma das mulheres que sequestrou e matou, estava uma gestante e ele estaria amaldiçoado, pois provocou a morte de um inocente. O filme também mostra uma relação infernal de Zé do Caixão com o sem nome através de Josef(el) Zanatas com o nome escrito de trás para frente, numa cena psicodélica e experimental.

Zé do Caixão afirma categórico  que esteve no inferno e que mesmo não existe. Quando o Trucador chega com um grupo de jagunços para eliminá-lo, Laura conta que está grávida e ele diz que com isso seu sangue se eternizará. Destaca ainda, que a sua missão na terra está cumprida pois terá um filho que dará continuidade à sua descendência e constata: “não posso morrer, tenho de defender meu filho dos homens inferiores’, mas acaba dominado e na luta com seus captores, ele mata um deles num pântano, no meio da areia movediça.

Márcia (Nádia Freitas) outra das suas vitimas tenta suicídio e, antes de morrer conta ao que a encontraram, que Zé do cCaixão  matou as jovens sequestradas e também foi responsável pela morte do filho do coronel, o que deixa toda a população da pequena cidade contra o assassino que chama os seus perseguidores de desgraçados, malditos e escravos do nada. Na sua vingança, o coronel (Roque Rodrigues) coordena  uma mobilização para expulsar o diabo daquela terra , “pois a reencarnação não existe e apenas é fruto da imaginação”.

Em desvantagem diante da multidão, Zé do Caixão relembra que o homem verdadeiro é superior às fraquezas terrenas e que é essencialmente imortal: “pois nada existe, tudo é mentira e eu sou indestrutível”, mas acaba desabando depois de fulminado por um tiro e ao cair, acaba rogando a ajuda de Deus e pede uma cruz, o símbolo da fé e da redenção.

Rodado em 1967, o filme foi feito com um pequeno orçamento e recursos escassos, atores amadores em sua maioria, mas revela um cineasta criativo e que mesmo sem formação acadêmica ou como autodidata coloca em debate o terror pelo terror, com cenas de cobras, aranhas e baratas verdadeiras, animais e insetos que também eram usados nos testes das suas atrizes e em cenas de realismo não fantástico.

O fato é que José Mojica Marins não só construiu a figura imortalizada do personagem Zé do Caixão, como é hoje considerado um cineasta cult nos Estados Unidos, onde é conhecido como Joe Coffin. Ele nos contou histórias variadas,  saltando desde a pornochanchada até o terror, sendo conhecido como o pai deste segmento no Brasil e um dos inspiradores do movimento marginal, graças ao seu estilo underground.

O cineasta, que foi roteirista de cinema e televisão,  ator e produtor,   também teve um discurso critico que lhe valeu cortes frequentes da censura, mas,  como autodidata, ele  também colocou na sua obra temas filosóficos  e existenciais, transcendendo os limites indefinidos entre o bem e do mal, como tinha noção de Zaratustra e do superhomem do Nietzsche assimilando ao se modo a leitura e problemática de um dos filósofos mais complexos do nosso tempo e o incorporando à linguagem que influenciou o cinema, a literatura e a vida das pessoas.

 

Ficha técnica:

Título : Esta noite encarnarei no teu cadáver

Direção: José Mojica Marins

Argumento e Roteiro: José Mojica Marins e Adenora de Sá Porto

Elenco - José Mojica Marins, Tina Whollers, Nádua Freitas, Antonio Fracati, Esmeralda Rachel, Paulo Ramos, Tânia Mendonça,  Carmen Marins, Mina  Monte, Denise Maria e Palito

Fotografia : Giorgio Attili

Diretor de arte – José Vedovato

P & B

Lançamento : 13 de março de 1967

Brasil