segunda-feira, 29 de abril de 2019

Um argumento da crítica e da inteligência




Estruturado como uma espécie de concerto em que a música seria as próprias palavras emergindo na tela, o documentário O Argumento de 50 Anos (The 50 Year Argument)  sobre a  história do The New York Review of Books, uma revista de crítica literária considerada uma referência em todo o mundo e que influenciou escritores, intelectuais e leitores ao longo dos últimos anos,  foi  composto a quatro mãos pelo cineasta Martin Scorsese e David Tedeschi,  lançando mão de entrevistas e imagens de arquivo para transmitir a emoção desejada na construção de sua memória histórica.
A New York Review of Books nasceu em 1963, como uma revista e hoje tem também um blog, e como o próprio nome define, com o foco em resenhas literárias. Ela surgiu a partir de uma greve geral nos jornais de Nova York, bem como pela insatisfação sobre o modo como os livros costumavam ser resenhados.
Em pouco tempo, The New York Review of Books  se tornou uma das principais referências para autores de todo o mundo, não apenas publicando artigos, contos e ensaios, como se engajando politicamente em debates sobre questões como por exemplo: a Guerra do Vietnã, da invasão do Iraque, do occupy Wall Street e o controle da mídia.
A ideia do projeto editorial da publicação foi gestada pelo poeta Robert Lowell e sua mulher, a crítica literária e escritora Elizabeth Hardwick, que discutiram a proposta com o editor Jason Epstein e sua mulher, Barbara, e depois convidaram o amigo Robert Silvers para ser editor da publicação ao lado de Barbara Epstein, que morreu em 2006. Todos concordavam em dois  pontos básicos: os livros eram editados e não havia espaço para a sua divulgação e,  como dizia, o poeta Thomas Stern Elliot, a função da crítica é ser a mais inteligente possível.
O próprio Silvers, então com 84 anos durante as filmagens do documentário O Argumento de 50 Anos, conta no filme que a ideia era tornar a publicação uma  parte do sistema (establishment), analisando-o criticamente a partir do seu interior, o que sem dúvida a  tornou uma instituição reconhecida cobrindo arte, política e grandes temas atuais. Entre as análises divulgadas na publicação estão artigos de Elizabeth Hardwick, sobre Selma; de Joseph Krafts, sobre quem eram os vietcongs ou de Hanna Arendt, que se celebrizou com a tese sobre a banalização do mal, com um ensaio sobre o Papa João XXIII.
Já o filme tem como base uma premissa básica de que a única verdade é a verdade narrativa, a memória das experiências diretas como também do intercâmbio de mentes, como admite Oliver Sacks em seu depoimento, que aparece como um dos entrevistados ao lado de Robert Silvers em seu gabinete abarrotado de livros; do linguista Noam Chomsky, destacando sobre a responsabilidade dos intelectuais: “falar a verdade e expor as mentiras” ou o dramaturgo irlandês Colm Toibin. O documentário recorre a imagens de arquivo filmadas por escritores como Susan Sontag, James Baldwin, declarando que “nós não  inventamos os negros, os brancos inventaram”, além Norman Mailler e outros nomes célebres como Andy Warhol.(Kleber Torres)


Ficha Técnica

Título: O argumento de 50 anos (The New York Review of Books: A 50 Year Argument)
Direção e roteiro:   David Tedeschi e  Martin Scorsese
Elenco: Robert Silvers, Oliver Sacks, Joan Didion, Michael Chabon, Noam Chomsky, Norman Mailer
Estreia: 2014
Gênero: Documentário

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Os sonhos e pesadelos de Akira Kurosawa




Num clima inteiramente onírico, mas tendo como tema transversal o meio ambiente e as perspectivas sombrias de uma hecatombe nuclear ou mesmo antevendo de forma premonitória em 1990 a tragédia de Fukushima 21 anos depois, o filme Yume (Sonhos), de Akira Kurosawa,  reúne uma série de curtas-metragens tendo como referências imagens do folclore japonês e os sonhos e os pesadelos do cineasta em diferentes momentos da sua vida, num ambiente em que as imagens se sobrepõem as palavras, com questionamentos sobre a transitoriedade da vida e a inevitabilidade da morte. O filme, dividido em oito segmentos, também embute uma mensagem de esperança, mostrando que, afinal de contas, nem tudo está perdido.

O primeiro segmento, "Raio de Sol Através da Chuva”, tem como referência uma lenda japonesa que diz quando o sol brilha através da chuva formando um arco-íris, as raposas se casam – no Brasil nós temos um ditado similar-, uma criança é alertada pela mãe que não deveria ir à floresta quando há chuva e sol, pois é a época do acasalamento das raposas, que não gostam de serem observadas por estranhos.

A criança desobedece aos conselhos maternos, entra na floresta e passa a observar o acasalamento as raposas, atrás de uma árvore. Ao ser descoberto pelas raposas, ele foge e retornar para casa sua mãe o impede de entrar e lhe entrega um pequeno punhal, para que se mate. Como nada na vida é definitivo, ela também sugere uma alternativa que pode remediar a situação. A criança retorna à floresta e descobre um mundo mágico com um arco-íris.

Em "O Pomar dos Pessegueiros", no segundo segmento, tudo começa quando o filho mais novo de uma família vai servir chá para as cinco irmãs e se depara com uma moça misteriosa que foge em direção à floresta. Ele vai ao seu encalço, então descobre que ela é uma boneca e observa os pessegueiros cortados, restando só tocos num campo devastado e morto.

Num átimo e em cores, os espíritos dos pessegueiros surgem para ele e, em uma dança sincrônica, falam que as bonecas são para enfeitar e festejar a florada dos pessegueiros, mas como eles não mais existem naquela área, não havia sentido a presença das bonecas, o que deixa o menino solitário e desolado.

No episódio "A Nevasca", um grupo de homens se vê perdido no meio de uma nevasca. Eles tentam escalar uma montanha, mas acabam vencidos pelo frio e pela fadiga, de repente aparece uma mulher misteriosa que cobre o líder com um manto de prata. O homem nota que a mulher é a própria morte, que se transforma em um monstro, então percebe que o grupo está próximo do acampamento,  tenta acordar os companheiros, mas não consegue, quando ecoa o som de uma corneta, indicando que o acampamento está cada vez mais próximo.

No quarto segmento, "O Túnel", um oficial do exército japonês anda sozinho em direção à entrada de um túnel onde é observado por um cão, que ladra e o ameaça. Mesmo assim, ele atravessa o túnel lentamente e  na saída, encontra com um soldado morto em combate, que o chama de comandante e bate continência para o seu superior. O comandante lembra que o soldado morreu em seus braços e que toda a tropa marchando em sua direção foi dizimada em combate. Ao grupo, ele conta que caiu prisioneiro dos inimigos e gostaria de ter morrido como os seus subordinados, em seguida, dá um comando de ordem unida e se afasta da tropa  depois de bater continência para os mortos.

Um sonho instigante está no quinto segmento, "Corvos", onde  um jovem pintor,  depois de observar os quadros de Van Gogh, adentra nos mesmos e se encontra com o pintor, interpretado por Martin Scorsese,  que o questiona  quanto ao motivo  pelo qual  não está pintando se a paisagem é um  um desafio e o estimula  a pintar de modo continuo. A sequência inclui o quadro Campo de Trigo com Corvos, uma obra do pintor concluída em julho de 1890, nas últimas semanas de vida de van Gogh que se suicidou.

O segmento "Monte Fuji em Vermelho" tem de certa forma um caráter premonitório, o vulcão do Fuji entra em erupção e ao mesmo tempo ocorre um incêndio em uma usina nuclear – na vida real o acidente nuclear de Fukushima Daiichi ocorreu  em 11 de março de 2011, causado pelo derretimento de três dos seis reatores nucleares da usina atingida por um tsunami provocado por um maremoto de magnitude 8,7 graus -  com seis reatores emitindo nuvens mortais com radiação de plutônio, estrôncio e césio. Ao considerar que a estupidez humana não tem limites e que a espera pela morte não é viver, um homem de terno afirma preferir a morte rápida por afogamento à uma lenta provocada pela radiação e as suas dolorosas consequências letais.

Na sétima parte, que tem como título "O Demônio Chorão", numa referência aos yokais,   uma uma classe de demônios e criaturas sobrenaturais do folclore japonês, que inclui o oni (ogro), a kitsune (“raposa) e a yuki-onna (“mulher da neve”) já referenciados em outros sonhos kurosawianos, tudo começa com um andarilho que encontra um demônio, que lamenta ter sido um homem ganancioso e, como muitos, transformou a terra num deserto com o uso de misseis e artefatos nucleares, que fizeramn nascer flores monstruosas e mutações geradas por uma humanidade idiota, o que resultou por fim numa crise com a falta de comida e de perspectivas de futuro para as pessoas.

Os sonhos e pesadelos terminam com uma mensagem de otimismo e de sustentabilidade em  "A Aldeia  dos Moinhos de Água", onde um vendedor de máquinas e equipamentos agrícolas  chega a uma pequena vila rural sem luz, cheia de moinhos de água,onde as pessoas usam velas e óleo de  linhaça, vivendo como no passado e seguindo o curso natural da própria vida.

Um idoso abordado pelo visitante diz que os inventos tornam as pessoas infelizes, porque os cientistas não entendem a essência da natureza e que o importante para se ter uma boa qualidade  vida é ter água limpa e ar puro.
A sequencia termina com um pomposo e antologico funeral  de uma mulher que viveu até os 99 anos na comunidade e o idoso morador do povoado, que foi seu namorado na juventude, considera que 100 anos é uma boa idade para parar de viver, lembrando que “alguns dizem que a vida é difícil, mas viver é bom e excitante.” No sonho de Kurosawa há otimismo e esperança apesar dos riscos inerentes da vida, que segundo o nosso Guimarães Rosa é sempre muito e deveras perigoso.(Kleber Torres)




Ficha técnica:


Título original:  Yume (Sonhos_
Direção e Roteiro: Akira Kurosawa
Elenco:  Akira Terao, Mitsuko Baisho, Toshie Negishi,  Hisashi Igawa, Chosuke Ikariva,   Chishu Ryu, Masayuki Yui e Martin Scorsese
Musica: Shin Ishiro Ikebe
Cinematografia : Takao Saito e Shoi Ueda
Ano: 1990
Custo:  US$12 000 000
Cor Colorido
1990




quinta-feira, 18 de abril de 2019

A múltiplas formas da água e dos caminhos da invenção



Absolvido da acusação de plágio pelo tribunal da Califórnia ao reconhecer que a história de A Forma de Água (The shape of water), filme do diretor Guillermo del Toro e do estúdio Fox Searchlight, apesar da similaridade com a peça, “Let Me Hear Your Whisper”, do escritor Paul Zinder,  nada tinha a ver em essência com a história de Helen, uma mulher solitária que trabalhava em um centro de pesquisas durante a Guerra Fria e criou uma compaixão por um golfinho, o qual conversa apenas com ela, a quem decide resgatar do laboratório quando o animal foi ameaçado por um grupo de cientistas, mas sem desenvolver nenhum vínculo sentimental e afetivo.
A diferença fundamental, é que a  A Forma da Água embora tenha como cenário época da Guerra Fria e do rock, retrata a história de Elisa Esposito (Sally Hawkins), que também trabalha em um laboratório de pesquisa e acaba se envolvendo com uma estranha criatura mantida em cativeiro e mal tratada pelos cientistas americanos, que disputam a sua posse com um grupo de espiões russos os quais planejavam o seu sequestro ou a sua eliminação. Já Elisa, cria um elo afetivo com a criatura e decide resgatá-la do laboratório, levando-a para o seu apartamento, dando vazão a um inimaginável caso de amor entre um ser humano e uma criatura monstruosa misto de homem e anfíbio.
A grande similaridade porém de A Forma da Água, que conquistou quatro Oscars em 2018 – de melhor filme, melhor diretor, trilha sonora original e melhor direção de arte, além de abocanhar o Leão de Ouro, do Festival de Veneza de 2017 e de outros 11 prêmios em diversos festivais -, é segundo Guillermo Del Toro a sua inspiração  no cult movie  da UniversalO Monstro da Lagoa Negra (Creature of the Black Lagoon), de 1954, dirigido por Jack Arnold e que tem como base uma história em  que o pesquisador Carl Maia fotografa o que parece ser a nadadeira de um anfíbio presumivelmente extinto.
O cientista volta aos Estados Unidos para revelar  sua descoberta e obter apoio financeiro para o projeto de pesquisa visando a sua captura, mas ao retornar à Amazônia, o grupo ruma para a Lagoa Negra, onde encontra uma misteriosa criatura anfíbia interpretada por Bem Chapmann (nas cenas em terra) e Ricon Browning (na água), que pode ser o elo perdido entre duas espécies - uma aquática e outra terrestre.
Como uma espécie de continuação não oficial de O Monstro da Lagoa Negra, o filme A Forma da Água é ambientada também na  década de 60, mas reconstituída com requinte nas cores, nos cenários cuidados, nos veículos e até mesmo no fundo musical das cenas, revelando ao mesmo tempo os cenários  dos  conflitos políticos e transformações sociais e culturais dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Neste cenário,  a muda Elisa Esposito, trabalha como faxineira em um laboratório experimental e secreto do governo americano, para onde é transportada uma estranha criatura anfíbia – que se parece na forma com o Monstro da Lagoa Negra - , mantida presa e torturada por  um sádico agente do serviço secreto Richard Strickland (Michael Shannon), que é por outro lado um dedicado pai de família e cuidadoso proprietário de um vistoso cadillac verde, o que o torna um personagem típico da banalidade do mal, como aquele homem que apenas realiza o seu trabalho acima das considerações éticas, morais e humanitárias.
Penalizada com o tratamento dado à criatura, que seria testada na corrida espacial com os russos – que sabem da sua existência e infiltram um agente para acompanhá-lo e ate matá-lo se preciso para que não fosse usado na corrida militarista de poder -,  por quem desenvolve um elo sentimental e de comunicação não verbal, Elisa recorre ao melhor amigo e vizinho  Giles (Richard Jenkins) e à colega Zelda (Octavia Spencer),  para sequestra-lo do centro de pesquisa, em uma aventura de alto risco e que pode custar o seu emprego e quem sabe até a sua própria vida, depois de uma perseguição implacável.
Hoje, num período em que o politicamente correto parece guiar as decisões no campo ético e moral, alguns críticos consideram que o filme é uma ode aos desajustados, aos incompreendidos, aos marginais, e em síntese aos párias que estão à margem de tudo. Em compensação, o cineasta Guillermo del Toro consegue, com A Forma de Água, um título poético e metafórico, construir um filme de grande  beleza plástica e marcado por um universo mágico,  com  elenco destacado por excelentes interpretações e  um final surpreendente, o que o torna um drama essencialmente romântico e que ao mesmo escapa à pieguice e à mesmice.

Ficha técnica

Título : The shape of water (A forma da água)
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro e Vanessa Taylor
Elenco:  Sally Hawkins (Elisa Esposito), Michael Shannon (Richard Strickland), Richard Jenkins (Giles), Octavia Spencer (Zelda), Michael Stuhlbarg, (Dr. Robert Hoffstetler), Doug Jones (Homem anfíbio), David Hewlett (Fleming), Nick Searcy (General Hoyt)
Trilha sonora: Alexandre Desplat
Diretor de fotografia:  Dan Laustsen
Cenografia: Paul D. Austerberry



quarta-feira, 17 de abril de 2019

Um pseudodocumentário com alienígenas do passado e do presente





Considerado um mocumentário, ou seja, uma espécie de pseudodocumentário com uma sátira ou crítica a eventos reais que tiveram repercussão em escala global, A Guerra Marciana (The Great Martian War 1913-1917) nos remete ao cenário da primeira Guerra Mundial, tendo como base “Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, que além da versão editorial, gerou um programa de rádio antológico comandado por Orson Welles em 1938, o que abalou os Estados Unidos e uma versão cinematográfica de Steve Spielberg, em 2005. No caso do mocumentário, os exércitos europeus enfrentam uma invasão alienígena apoiada por trípodes, máquinas de três pernas, que dizimavam as tropas no campo de batalha.

No filme povoado de trípodes - nome dado às máquinas alienígenas fictícias do romance de H.G. Wells, em  A Guerra dos Mundos - oriundos do planeta Marte, que emergem como garças, abelhas, piolhos e vitricidas, tudo reunido numa guerra mostrada como se fosse um documentário do History Channel, a partir de imagens reais da movimentação das tropas européias na época da I Guerra Mundial e intercaladas com depoimentos de sobreviventes, testemunhas de guerra, seus familiares e combatentes que enfrentaram a invasão marciana.

O diretor Mike Slee usa os efeitos especiais com uma certa parcimônia e consegue estruturar uma narrativa dinâmica e objetiva, que agrada ao espectador, oferecendo ao mesmo tempo uma releitura criativa de fatos e de personagens históricos, com o ritmo dos documentários dos nossos dias e revelando os incidentes ocorridos no campo de batalha.

As entrevistas são esclarecidas com  subtítulos mostrando que se trata de programas gravados em anos distintos e as cenas de combate são apresentadas a partir de cópias originais, inclusive com tomadas de líderes como Winston Churchill e presidente,  Franklin Delano Roosevelt, o 32º presidente americano e que governou dos Estados Unidos de 1933 até a sua morte em 1945, mas que na época da 1ª Guerra Mundial ocupava o cargo de Secretário Assistente da Marinha.

O filme também inclui gravações recentes que tentam se passar por antigas através do envelhecimento das imagens, mas sem alcançar, talvez de forma proposital pelo cineasta, o resultado desejado, sem contudo afetar o resultado do projeto que mistura ficção e realidade, num documentário falso mas construído a partir de um bom roteiro e de uma história cujo enredo é conhecido sobre uma invasão de marcianos, inspirada duplamente no clássico de HG Wells e na I Grande Guerra, um conflito que envolveu a Inglaterra, França, Estados Unidos, Rússia, Alemanha e outros países do continente europeu. Vale a pena conferir.(Kleber Torres)

Ficha técnica
Título original: A Guerra Marciana (The Great Martian War)
Direção: Mike Slee
Roteiro: Steve Maher
Fotografía: Christopher Romeike
Música: Mark Korven
Elenco: Mark Strong, Jock McLeod, Joan Gregson, Ian Downie, Thomas Gough, Ashley Bomberry, Daniel Matmor, Hazel Douglas, Walter Stegmayer, Briony Glassco, Howard Jerome, Ross Walton e Gyuri Sarossy
Nacionalidade:       Canadá e Reino Unido
Estreia: 2013
Duração: 127 minutos

terça-feira, 16 de abril de 2019

A vida e o recomeço de um homem chamado Ove







Resiliência, ou seja, a capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças ao longo da vida com todas as suas desditas esta é a chave para compreensão do filme  Um Homem Chamado Ove (En Man Som Heter Ove), dirigido e roteirizado pelo cineasta Hannes Holm, a partir de um  romance de Carl Fredrik Backman, narrando a história de um velho ranzinza, aposentado e solitário depois da morte de sua mulher, que chega a tentar o suicídio como forma de sair do isolamento e da falta de perspectivas na rotina do seu  dia a dia.

Tudo começa a mudar com a chegada de  novos vizinhos para a casa em frente à sua e o nascimento de uma amizade inesperada, tirando  Ove (Rolf Lassgård) da sua rotina cotidiana de acordar, cuidar da casa, fechar a porta de casa  por três vezes, um sinal de transtorno obsessivo-compulsivo, complementados pela insana tarefa de checar os estacionamentos do condomínio onde vive, agindo como um fiscal da comunidade, anotando as placas dos veículos nas vagas de cada imóvel ou até mesmo guardando as bicicletas dos jovens recalcitrantes. Ele também fiscaliza a passagem de veículos nas ruas, reclamando dos infratores e  checando se o portão de acesso ao conjunto residencial no interior da Suécia está trancado.

O que seria o comportamento de um sexagenário caturra da terceira idade, acaba reforçado por Ove, que se  irrita e implica com facilidade com os vizinhos, por todos os motivos imagináveis, o que o deixa ainda mais isolado. Afetado  após da morte da mulher, a quem dedicava atenção e um carinho especial, a sua situação foi agravada com a sua demissão após várias décadas da empresa onde trabalhava, o que o reduziu à condição de um solitário aposentado.

Assim, isolado e sem perspectivas, Ove resolve dar um fim à própria vida, enforcando-se no lustre da sala de sua casa, justo no momento em que percebe a chegada de novos vizinhos, o que acaba mudando de ponta a cabeça a sua vida. Ele foi interrompido de colocar a corda no pescoço com a chegada da nova vizinha que pode ajuda para a mudança.

Montado a partir de flashbacks, o filme mostra ações intercaladas do passado e do presente na vida de Ove, desde a infância até a velhice solitária e rebugenta, onde o suicídio aparece como um tema transversal e recorrente. Ove é interpretado por Filip Berg na sua juventude e  por  Viktor Baagoe  enquanto criança de uma família sueca tradicional.

O jovem Ove se mostra fascinado por veículos Saabs e motores de carros, além de ser despertado por uma paixão juvenil -comum à maioria dos adolescentes- pela professora Sonja (Ida Engvoll) e desenvolver um ódio justificável pelos burocratas de um país em mudança no campo social e cultural com a chegada de migrantes multirraciais da América Latina, da África  e do Oriente Médio.
O fato é que neste interim, Ove  começa a amizade com os novos vizinhos, entre os quais  a migrante iraniana Parvaneh (Bahar Pars), uma gestante com duas filhas (Nelly JamaraniZozan Akgun), e seu  marido Patrik (Tobias Almborg), o que dá à Ove a chance de uma guinada nas suas perspectivas da vida através de uma mudança gradual e percebida por todos os que vivem no seu entorno na mesma comunidade onde residem.
O filme  sueco disputou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2017, concorrendo também na categoria Melhor Maquiagem e Cabelo. As atuações de Lassgård e de Berg como idoso e jovem são convincentes, refletindo com rigor a construção de um mesmo personagem, enquanto Sonja (Ida Engvoll), é a mulher  do protagonista que emerge a partir de flashbacks desde a forma que se conhecem até a sua morte. Tudo isso se soma numa história humana, que nos leva a uma profunda reflexão sobre a vida e a resiliência, talvez a chave permanente para todo e qualquer recomeço, mostrando que a esperança é talvez a última que morre. (Kleber Torres)



Ficha técnica

Título: Um Homem Chamado Ove (En Man Som Heter Ove)
Direção: Hannes Holm
Roteiro: Hannes Holm baseado em um romance de Carl Fredrik Backman, com o mesmo título
Elenco:  Rolf Lassgård,  Bahar Pars, Filip Berg, Ida Engvoll, Tobias Almborg, Klas Wiljergård, Chatarina Larsson, Börje Lundberg, Stefan Gödicke, Johan Widerberg, Anna-Lena Brundin, Nelly Jamarani, Zozan Akgün, Viktor Baagøe
Duração: 116 min
Suécia – 2015

segunda-feira, 15 de abril de 2019

A chanchada descaracterizou o rei do Brasil ?




Com um  custo de quase R$ 9 milhões, o filme Chatô, o Rei do Brasil, produzido, dirigido e roteirizado  por Guilherme Fontes, baseado na obra literária de Fernando Morais, que escreveu uma alentada biografia de Assis Chateubriand, um magnata das comunicações no Brasil e que comandou o império dos Diários Associados, englobando uma poderosa rede de rádios, jornais e emissoras de televisão, ficou muito aquém do esperado. Como resultado, o filme acabou com um sabor de comédia e chanchada, mas muito distante da realidade de um homem que influenciou de forma decisiva a política, a economia e a própria cultura brasileira com a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
A história começa a partir do momento em que Assis Chateaubriand, o Chatô, interpretado por  Marco Ricca sofre um AVC nos anos 60 do século passado. A narrativa também resgata as origens humildes do magnata das comunicações, que foi criança pobre no sertão da Paraíba e imobilizado no leito de uma unidade de terapia intensiva no final da sua vida, se imaginava julgado em um programa de televisão similar ao Buzina do Chacrinha, que foi em realidade dirigido por José Abelardo Barbosa de Medeiros.
Chatô  resultou numa versão escrachada da vida do fundador dos Diários Associados. No enredo, o personagem interpretado por Marco Ricca, pode até ser identificando por alguns traços da personalidade do biografado como o cinismo e a visão debochada, bem como pelo seu lado autoritário, machista, mulherengo e histriônico, mas ao mesmo tempo carrega exageros no seu sotaque nordestino e na fala arrastada, tornando-o personagem uma caricatura descaracterizada do empresário e jornalista, que sempre teve sua vida associada aos poderosos de plantão .
No filme, a vida de Chatô é posta em julgamento num programa popular de auditório transmitido pela TV em pleno horário nobre dominical. No programa emergem desafetos como Getúlio Vargas (Paulo Betti) e Gabriel Braga Nunes (Carlos Rosemberg, que seria o seu rival Samuel Wainer, fundador do Última Hora) ou antigas paixões como Andréa Beltrão, na pele da socialite Vivi Sampaio, desfilando ao lado de Leandra Leal (Lola) e Eliane Giardini (Consuelo).
O filme que nasceu de um projeto muito ambicioso e envolveu uma série de ações judiciais diversas para ressarcimento dos cofres públicos em função dos financiamentos concedidos, demorando 20 anos para chegar às telas dos cinemas. Ele  conquistou o  prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo Grande  APCA – e acabou consagrado como vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2016, abocanhando  quatro prêmios concedidos a longa-metragens, inclusive o de melhor diretor para Guilherme Fontes.
Há quem considere que Guilherme Fontes buscou na sua obra inspiração no clássico Cidadão Kane, de Orson Welles, considerado uma obra prima de cinema, bem como  em outros cineastas influentes como Martin Scorsese, Federico Fellini e mesmo no Cinema Novo, mas acabou se perdendo ao produzir uma comédia com uma história que não só envolve um drama, como também a tragédia de um empresário que construiu um império de comunicação, mas viu, ainda em vida, o edifício começar a ruir, preso num leito hospitalar onde ainda mesmo assim, encontrava tempo para os seus limitados prazeres do sexo, para uma revisão da sua vida ou até mesmo remissão dos pecados.(Kleber Torres)

Ficha técnica:
Título : Chatô, o Rei do Brasil
Direção: Guilherme Fontes
Roteiro: João Emanuel Carneiro, Matthew Robbins e Guilherme Fontes,
baseado no livro Chatô, o Rei do Brasil, de Fernando Morais
Elenco: Marco Ricca, Andréa Beltrão, Paulo Betti, Leandra Leal, Eliane Giardini e Gabriel Braga Nunes
Gênero: Comédia
Lançamento: 2015
Brasil
cor
102 min

domingo, 14 de abril de 2019

BR 716 : uma metáfora do passado




Um retrato do Brasil nos idos de 64, assim pode ser definido BR 716, o último filme do cineasta Domingos Oliveira, que foi em 2016, o grande vencedor do 44º Festival de Cinema de Gramado (conquistando quatro Kikitos, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor, para Domingos Oliveira, Melhor Atriz Coadjuvante para Glauce Guima e Melhor Trilha Musical) e nos legou cerca de 25 filmes, sendo considerado por alguns críticos como um Woody Allen brasileiro.
Em síntese, o  filme narra a história do engenheiro Felipe (Caio Blat) que abandona a sua profissão para se tornar um escritor levando uma vida regada aos prazeres do álcool e do sexo,  com festas diárias realizadas no apartamento rua Barata Ribeiro 716, o seu endereço e onde procura esquecer a separação da ex-mulher que o deixa para viver com seu melhor amigo.
Felipe vive num confortável apartamento cedido pelo seu pai (Daniel Dantas), em Copacabana, um dos redutos da boemia carioca. Ali, ele e seus amigos vivem um ciclo agitado de noitadas sem drogas aparentes, mas com muita porralouquice, o que se contrapõe com a agitação do período turbulento que antecedeu o golpe militar de 1964. Ele  também tenta o reencontro de um novo amor.
Um pretenso militante político narra sobre as articulações de um presumível movimento revolucionário popular e, depois de um discurso típico da esquerda festiva, muito comum no período,  acaba caindo mesmo na gandaia bebendo tudo e deixando o debate ideológico para os amigos de classe média, que viviam num ambiente asséptico  e confortável, distante até mesmo dos hippies de butique e das drogas.
Cabe lembrar que Domingos Oliveira, que sempre foi um autor lírico, e considerava o filme BR 716  como autobiográfico, dizendo em um tom explicativo: "Caio foi meu ego neste filme e eu fui o outro". O filme seria uma metáfora dos sonhos de liberdade de uma geração. (Kleber Torres)

Ficha técnica:
Título : BR 716
Direção:       Domingos de Oliveira
Roteiro:       Domingos de Oliveira
Elenco: Caio Blat, Daniel Dantas, Sophie Charlotte, Maria Ribeiro, Lívia de Bueno, Álamo Facó, Sérgio Guizé e Pedro Cardoso.
Gênero:       Drama
Lançamento: Brasil 2 de setembro de 2016
89 minutos

domingo, 7 de abril de 2019

Os vampiros de Lincoln e a guerra de secessão





Um filme em  que a realidade se mistura com ficção e a própria  lenda, assim pode ser definido ‘Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros’, dirigido pelo russo Timur Bekmambetov, mas que  não convence e parece um produto destinado para um público de adolescentes que gostam de filmes de terror e de aventura, manchados com muito sangue e adrenalina. O filme também reconstitui uma época histórica que inclui a guerra de secessão entre os anos de 1861 e 1865, dividindo os Estados Unidos entre Confederados e a União numa disputa fraticida que teve dos panos de fundo a libertação dos escravos.
Tudo começa quando o  menino Abraham Lincoln (Cameron M.Brown) jura vingar a morte da mãe, atacada por um vampiro.  Depois, já adulto, ele conta com a  ajuda de Henry (Domenic Cooper), um experiente caçador de vampiros, que o orienta para uma guerra sem quartel, em que  os vampiros planejam dominar os Estados Unidos. Nesta disputa, os vampiros também andam na luz do dia e possuem a capacidade de ficar invisíveis aos  olhos dos mortais.
“Nenhum homem que tenha vivido conhece mais sobre a vida depois da morte que eu ou você. Toda alegoria pós-morte simplesmente desenvolveu-se com base no medo, ganância, imaginação e poesia,”  esta frase de Edgar Allan Poe serve de referência básica para um roteiro que poderia ser mais criativo construído a partir do romance de Seth Grahame-Smith, que o assina em conjunto com Simon Kinberg.
No filme tudo acontece com rapidez e se num momento Abe é uma criança, logo depois, passa à categoria de caçador de vampiros e numa  sequência aparece como 16ª  presidente dos Estados Unidos. Na caçada aos vampiros Abraham Lincoln (Benjamin Walker) conta ainda com a ajuda do amigo Will (Anthony Mackie) e conhece a Mary Todd  Lincoln(Mary Elizabeth Winstead), com quem se casa e tem um filho. Como antagonistas aparecem os vampiros Adam (Rufus Sewell), numa possíverel ferência a um Adão reverso e Jack Burts  (Marton Csokas).
Mesmo com a produção de Tim Burton e de um grupo de associados, os efeitos especiais do filme deixam muito a desejar e são de qualidade duvidosa.  Entre os exemplos estão a destreza e a arte de Lincoln no uso de machados; a  cena que poderia ser antológica de uma disputa de Abe contra vampiros envolvendo uma tropa de cavalos ou mesmo a marcha de vampiros confederados  contra  as forças da União, com cenas a de ação mal cuidadas e construídas de forma amadorística.
‘Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros’, dá outra versão para a morte do filho do presidente dos Estados Unidos e acrescenta  como contraponto a própria lenda de vampiros, mas acaband
o como um mero registro fantasioso e inverossímil de uma  época, que tem como cenário a história de Abraham Lincoln,  o qual se celebrizou por ter vencido a Guerra de Secessão contra os estados confederados e conseguido manter a unidade nacional de um país dividido  em torno da questão do fim da escravatura, mas acabou transformado num justiceiro com um machado enfrentando na sombras e até dia tamanho criaturas da noite, que às vezes ficam invisíveis nas lentes de uma câmera ou diante de um espelho. (Kleber Torres)

Ficha técnica:
Título : Abraham Lincoln: Vampire Hunter (Abraham Lincoln : Caçador de Vamapiros)
Direção : Timur Nekmambetov
Roteiro: Seth Grahame-Smith/ Simon Kinberg
Fotografia:  Caleb Deschanel  
Elenco: Benjamin Walker,  Anthony Mackie, Mary Elizabeth Winstead; Rufus Sewell, Marton Csokas, Domenic Cooper, Alex Lombard, Cameron M.Brown
Orçamento : US$ 69 milhões
Ano: 2012