Num clima
inteiramente onírico, mas tendo como tema transversal o meio ambiente e as
perspectivas sombrias de uma hecatombe nuclear ou mesmo antevendo de forma
premonitória em 1990 a tragédia de Fukushima 21 anos depois, o filme Yume
(Sonhos), de Akira Kurosawa, reúne uma
série de curtas-metragens tendo como referências imagens do folclore japonês e
os sonhos e os pesadelos do cineasta em diferentes momentos da sua vida, num
ambiente em que as imagens se sobrepõem as palavras, com questionamentos sobre
a transitoriedade da vida e a inevitabilidade da morte. O filme, dividido em
oito segmentos, também embute uma mensagem de esperança, mostrando que, afinal
de contas, nem tudo está perdido.
O primeiro segmento, "Raio de Sol Através da Chuva”, tem como
referência uma lenda japonesa que diz quando o sol brilha através da chuva
formando um arco-íris, as raposas se casam – no Brasil nós temos um ditado
similar-, uma criança é alertada pela mãe que não deveria ir à floresta quando
há chuva e sol, pois é a época do acasalamento das raposas, que não gostam de
serem observadas por estranhos.
A criança desobedece aos conselhos maternos, entra na floresta e passa a
observar o acasalamento as raposas, atrás de uma árvore. Ao ser descoberto
pelas raposas, ele foge e retornar para casa sua mãe o impede de entrar e lhe
entrega um pequeno punhal, para que se mate. Como nada na vida é definitivo, ela
também sugere uma alternativa que pode remediar a situação. A criança retorna à
floresta e descobre um mundo mágico com um arco-íris.
Em "O Pomar dos Pessegueiros", no segundo segmento, tudo
começa quando o filho mais novo de uma família vai servir chá para as cinco irmãs
e se depara com uma moça misteriosa que foge em direção à floresta. Ele vai ao
seu encalço, então descobre que ela é uma boneca e observa os pessegueiros cortados,
restando só tocos num campo devastado e morto.
Num átimo e em cores, os espíritos dos pessegueiros surgem para ele e,
em uma dança sincrônica, falam que as bonecas são para enfeitar e festejar a
florada dos pessegueiros, mas como eles não mais existem naquela área, não havia
sentido a presença das bonecas, o que deixa o menino solitário e desolado.
No episódio "A Nevasca", um grupo de homens se vê perdido no
meio de uma nevasca. Eles tentam escalar uma montanha, mas acabam vencidos pelo
frio e pela fadiga, de repente aparece uma mulher misteriosa que cobre o líder
com um manto de prata. O homem nota que a mulher é a própria morte, que se
transforma em um monstro, então percebe que o grupo está próximo do acampamento,
tenta acordar os companheiros, mas não
consegue, quando ecoa o som de uma corneta, indicando que o acampamento está cada
vez mais próximo.
No quarto segmento, "O Túnel", um oficial do exército japonês anda
sozinho em direção à entrada de um túnel onde é observado por um cão, que ladra
e o ameaça. Mesmo assim, ele atravessa o túnel lentamente e na saída, encontra com um soldado morto em
combate, que o chama de comandante e bate continência para o seu superior. O
comandante lembra que o soldado morreu em seus braços e que toda a tropa marchando
em sua direção foi dizimada em combate. Ao grupo, ele conta que caiu prisioneiro
dos inimigos e gostaria de ter morrido como os seus subordinados, em seguida, dá
um comando de ordem unida e se afasta da tropa depois de bater continência para os mortos.
Um sonho instigante está no quinto segmento, "Corvos", onde um jovem pintor, depois de observar os quadros de Van Gogh, adentra
nos mesmos e se encontra com o pintor, interpretado por Martin Scorsese, que o questiona quanto ao motivo pelo qual não está pintando se a paisagem é um um desafio e o estimula a pintar de modo continuo. A sequência inclui
o quadro Campo
de Trigo com Corvos, uma obra do pintor concluída em julho de 1890, nas últimas
semanas de vida de van Gogh que se suicidou.
O segmento "Monte Fuji em Vermelho" tem de certa forma um caráter
premonitório, o vulcão do Fuji entra em erupção e ao mesmo tempo ocorre um
incêndio em uma usina nuclear – na vida real o acidente
nuclear de Fukushima Daiichi ocorreu em
11 de março de 2011, causado pelo derretimento de três dos seis reatores nucleares
da usina atingida por um tsunami provocado por um maremoto de magnitude 8,7
graus - com seis reatores emitindo nuvens
mortais com radiação de plutônio, estrôncio e césio. Ao considerar que a estupidez
humana não tem limites e que a espera pela morte não é viver, um homem de terno
afirma preferir a morte rápida por afogamento à uma lenta provocada pela
radiação e as suas dolorosas consequências letais.
Na sétima parte, que tem como título "O Demônio Chorão", numa
referência aos yokais, uma uma classe de demônios e criaturas sobrenaturais do
folclore japonês, que inclui o oni (ogro), a kitsune (“raposa) e a yuki-onna (“mulher
da neve”) já referenciados em outros sonhos kurosawianos, tudo começa com um andarilho
que encontra um demônio, que lamenta ter sido um homem ganancioso e, como
muitos, transformou a terra num deserto com o uso de misseis e artefatos
nucleares, que fizeramn nascer flores monstruosas e mutações geradas por uma
humanidade idiota, o que resultou por fim numa crise com a falta de comida e de
perspectivas de futuro para as pessoas.
Os sonhos e pesadelos terminam com uma mensagem de otimismo e de
sustentabilidade em "A Aldeia dos Moinhos de Água", onde um vendedor de
máquinas e equipamentos agrícolas chega a
uma pequena vila rural sem luz, cheia de moinhos de água,onde as pessoas usam
velas e óleo de linhaça, vivendo como no
passado e seguindo o curso natural da própria vida.
Um idoso abordado pelo visitante diz que os inventos tornam as pessoas
infelizes, porque os cientistas não entendem a essência da natureza e que o
importante para se ter uma boa qualidade vida é ter água limpa e ar puro.
A sequencia termina com um pomposo e antologico funeral de uma mulher que viveu até os 99 anos na
comunidade e o idoso morador do povoado, que foi seu namorado na juventude,
considera que 100 anos é uma boa idade para parar de viver, lembrando que “alguns
dizem que a vida é difícil, mas viver é bom e excitante.” No sonho de Kurosawa
há otimismo e esperança apesar dos riscos inerentes da vida, que segundo o
nosso Guimarães Rosa é sempre muito e deveras perigoso.(Kleber Torres)
Ficha
técnica:
Título
original: Yume (Sonhos_
Direção e
Roteiro: Akira Kurosawa
Elenco: Akira Terao, Mitsuko Baisho, Toshie
Negishi, Hisashi Igawa, Chosuke Ikariva,
Chishu Ryu, Masayuki Yui e Martin Scorsese
Musica:
Shin Ishiro Ikebe
Cinematografia
: Takao Saito e Shoi Ueda
Ano: 1990
Custo: US$12
000 000
Cor Colorido
1990
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