sábado, 23 de novembro de 2019

A face da tragédia tem um nome de mulher em Lady Macbeth





Sem nenhuma relação direta com a tragédia shakespeareana,  o filme inglês Lady Macbeth tem como base uma adaptação da peça "Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk", do escritor russo Nikolai Leskov, cuja apresentação mesmo sem nenhuma relação com o campo da política, mas tendo como pano de fundo a luta de classes dicotômicas entre servos e senhores, homens e mulheres, foi proibida na Rússia durante o período negro do stalinismo. Leskov, se inspirou numa das personagens de William Shakespeare, ao incorporar elementos trágicos da peça, captando a falta de empatia e arrogância daqueles que desprezam os seus subalternos ou a própria vida.
O filme num cenário da era vitoriana, tem a direção  competente de William Oldroyd e o roteiro assinado por  Alice Birch, uma dupla de estreantes em longas-metragens, mas que ambientaram a obra nos idos de 1865, período em que o livro foi lançado na Inglaterra. Lady Macbeth resgata cenário de uma Inglaterra rural no século 19 e tem como referência o debate e o lugar da mulher numa sociedade patriarcal e conservadora.
Lady Macbeth nos mostra os conflitos entre a masculinidade e a feminilidade no mundo. Mostra também como uma mulher, Katherinne (Florence Pugh), com uma interpretação magistral, deixa de ser uma figura submissa, que não tinha relações sexuiais com o marido, Alexander (Paul Hilton),  que a mandava se despir, ficar de costas para ele e olhando para a parede, enquanto o mesmo se masturbava.
As coisas mudam quando o marido viaja a negócios e ela começa a ter um caso com um dos agregados da fazenda, Sebastian (Cosmo Janis), que tinha uma relação sadomasoquista com uma das criadas da família. Katherinne também bebe todo o vinho do sogro Boris (Christhopher Fairbanks) e que estava na adega, e quando este a interpela lembrando o seu fracasso enm todas as missões, inclusive em dar um herdeiro, mas acaba morto pela nora.
Katherinne considera que o marido odiava o pai e a ela e que talvez não volte mais. Mas ele retorna, observando que ela ficou mais gorda e fedorenta, se tornando uma vagabunda na sua ausencia. Alexander acaba morrendo num confronto com o rival e a mulher. Para não deixar pistas de sua presença, os dois enterram o homem e o seu cavalo.
A coisa se complica com o aparecimento de um herdeiro de Alexander, que também acaba morto numa sequência de crimes sucessivos capitaneados por Katherinne, que joga sem nenhum pudor a culpa no amante e na criada com quem deixara de falar após se relacionar com Serbastian, que a acusou pela sequencia de crimes dizendo que "ela me sufocou, me perseguiu e é uma doença." Katherinne se defendeu dizendo que tudo era uma mentira deslavada e que "o menino era como um filho para mim e eu, simplesmente, não fiz nada".
Como a corda arrebenta do lado mais fraco, o amante a a criada acabam presos, e a herdeira da Lady Macbeth assume impune o comando dos bens e do patrimônio de uma rica família de latifundiários. Ela não foi julgada e nem condenada sequer numa primeira instância, mas continuou tendo o gosto e o sabor da liberdade dos justos pairando sempre acima dos limites imprecisos do bem ou do mal.(Kleber Torres)

Ficha técnica:
Direção: William Oldroyd
Roteiro: Alice Birch
Elenco: Florence Pugh, Cosmo Jarvis, Naomi Ackie, Paul Hilton, Christhopher Fairbanks,  Bill Fellows, Joseph Teague, Ian Conningham e Fleur Houdjik
Cinematografia : Ami Wegner
Gênero: Drama
Nacionalidade: Reino Unido
1h 29min
2016

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Os magnificos caminhos de Crown e a arte de roubar



Inovador na linguagem, com o uso de telas divididas em multiplas imagens nas mais diversas sequências, o filme Crown, o Magnifico (The Thomas Crown Affair), dirigido em 1968 pelo cineasta Norman Jewinson, a partir de um roteiro assinado por Alan R.Trustman, mostra que o roubo pode ser uma arte e também pode compensar, ganhando inclusive um Oscar. O filme teve um remake em 1999, com o título no  Thomas Crown, a arte do crime, com Pierce Brosnan e Rene Russo
Crown também tem sequências antológicas como a dos seis minutos de um jogo de xadrez, marcado pela sensualidade numa disputa entre o hedonista Thomas Crown (Steve McQueen) e a detetive Vickie Anderson (Faye Dunaway) , que acaba num dos mais longos beijos da história do cinema e de um vôo num planador amarelo.
Thomas Crown é um próspero executivo que comanda um roubo audacioso a um banco, coordenando um grupo de quatro homens, de chapéu, óculos escuros e revólveres com silenciadores, que não se conheciam e que que rendeu dois milhões e seiscentos mil dólares. O dinhero é colocando  em um veículo e transportado pelo motorista, contratado por US$ 50 mil, que o deixa numa  lata de lixo de cemitério, junto a uma lápide que dizia: "abençoados os puros de coração", enquanto os outros ladrões escapavam separadamente pelas ruas centrais de Nova York.
Crown viaja para a Europa e  deposita parte dos recursos roubados num banco suíço, em uma conta com codinome e acesso através de uma senha. Enquanto a polícia realiza investigações sem sucesso sobre o roubo milionário, surge Vickie Anderson, uma investigadora de uma agência de seguros, que deverá receber 10% da quantia recuperada. Vale lembrar que um dos destaques do filme é também a canção original The Windmills of Your Mind, de Michel Legrand.
Depois de analisar uma relação de cinco possiveis suspeitos, que teriam viajado para a Suiça após o roubo,  Vickie considera que cada crime tem uma pesonalidade e uma marca de quem o praticou. Ela tem certeza absolutra de que Crown foi o autor intelectual do roubo e começa a segui-lo ostensivamente a partir de um jogo de polo. 
Entre os dois surge uma forte atração e, mesmo sabendo que ela espera uma falha sua para prendê-lo, Crown, que se preocupa com o que quer ser amanhã, continua a se encontrar a investigadora, numa espécie de jogo entre gato e rato. Nesse interim, a polícia identifica e localiza o motorista envolvido no roubo que é colocado na mesma sala de Crown, mas não o reconhece.
Vickie se aproxima ainda mais do antagonista e amante.  Após um jantar, ela acaba indo ao seu apartamento, onde os dois jogam uma sensual partida de xadrez e ao perceber que seria derrotado pela adversária, Crown joga duro  e a chama para jogar uma outra coisa, que emerge numa fusão de imagens sensuais.
Ele também a leva para a praia e mesmo sabendo que tudo o que ele gastar acima do seu patrimonio seria rastreado pelo fisco americano, Crown planeja um outro roubo igual e uma fuga para um pais tropical cheio de florestas, samba, carnaval e Pão de Açúcar, que coincidentemente é o preferido para fugitivos do cinema e pelos nossos corruptos de plantão. Com o crime consumado, ele deixa um bilhete e o seu Rolls Royce preto para a Vickie e parte em busca de novas aventuras, porque pelo menos no cinema e muitas vezes na vida, o crime também compensa. (Kleber Torres)


Ficha técnica:

Título :  The Thomas Crown Affair (Crown, o Magnífico)
Direção: Norman Jewison
Roteiro: Alan R.Trustman
Elenco: Steve McQueen, Faye Dunaway, Paul Burke, Jack Weston, Yaphet Kotto, Gordon Pinset, Addison Powel e Bruce Glover
Cinematografista : Heskel Wexler
Música : Michel Legrand
Gênero: Policial, Suspense, Romance
Nacionalidade: EUA
Ano de produção 1968
Cor Colorido

domingo, 3 de novembro de 2019

A arquitetura da morte na construção da casa de Jack




Ninguém sabe exatamente com quantos paus se faz uma canoa, mas o filme A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built) nos leva a uma construção edificada com dezenas de corpos das vítimas de Jack (Matt Dillon), um serial killer que divide o seu tempo entre assassinatos em profusão; o projeto da construção de uma casa e um mergulho abissal nos dez círculos do inferno de Dante em companhia de Virgílio (Bruno Ganz), com quem compartilha suas histórias de sangue e morte.

O roteiro valeria por uma confissão de um psicopata entremeada com reflexões sobre a transitoriedade da vida, a produção de vinhos e porque não, quanto às diferenças entre arquitetura e engenharia, para quem considera sem precisar da licença de Thomas de Quincey, o assassinato como a mais bela das artes.

O filme de 2 horas e 32 minutos, tem a direção  e roteiro do polêmico cineasta Lars Von Trier e chegou a ser comparado por alguns críticos em sua estruturação narrativa com Ninfomaníaca. O ponto em comum entre as duas obras está na rotina de compulsões dos personagens centrais, o do primeiro filme com foco no sexo e o segundo, nas dimensões da morte em toda a sua extensão. Já o Anticristo se insere neste circuito pela sua estética de violência e exacerbada pelos dramas existenciais.

No filme,  Jack se revela um criminoso nato, que cultiva a  morte desde a  mais tenra infância. Na idade adulta, ele se forma em arquitetura, cuidando de projetos como o da própria casa, com o mesmo detalhismo com que cuida das mortes de suas vítimas, executadas sempre com requintes de crueldade,  sem nenhuma empatia, o que o leva a matar os próprios filhos, a mulher e a outras vitimas escolhidas ao acaso, de forma aleatória.

O ciclo de mortes foi deflagrado  após uma carona a uma mulher (Uma Thurman), golpeada na face e no crânio por falar em demasia; outra vítima, por ser ignorante e interesseira –queria que o seguro de vida do marido fosse aumentado pelo psicopata arquiteto, o qual se passava por um agente de seguros- , e uma terceira, que acaba morrendo em função da  sua ingenuidade, quando Jack a informou que era um assassino em série responsável por uma sequência de 60 mortes. Os demais se inserem numa trilha de sangue que as vezes se dilui com a ajuda da chuva.

No  filme, o projeto da casa é similiar ao da sequência de mortes, que se estendem como um ciclo que nunca termina. Jack  o compara com o TOC, uma espécie de transtorno obsessivo-compulsivo voltado para a morte. Como metáfora, o roteiro o roteiro de Lars Von Trier insere comparações entre os atos de Jack e as obras de arte clássicas, comparando os crimes com a estética das catedrais, pinturas, filmes e livros,  o que se complementa com fotos tiradas dos cadáveres,  um fato comum durante a época vitoriana na Inglaterra, entre os anos 1837 e 1901, quando as pessoas utilizavam a fotografia para guardar recordações de gente morta. Afinal o que é arte e o que não o é ? 

O filme que tem uma narrativa lenta e complexa também trata a questão da violência exacerbada e sem sentido do nosso tempo com toques refinados de humor negro, revelando Jack como vítima de espécie de transtorno obsessivo-compulsivo, fato que o obriga a voltar repetitivamente ao  local do crime para limpar as marcas de sangue e como forma racional de apagar os vestígios do crime.

Uma outra sequência envolve um experimento de Jack para matar um grupo de pessoas com uma única bala como o faziam os nazistas para economizar munição no fim da guerra e a caminho da solução final, usando um projétil  full metal jacket. Tudo termina quando o serial killer acaba localizado e com a ajuda de Virgílio, resolve concluir suas obras com uma casa a partir dos corpos das vítimas.

A ação do serial killer é protegida ainda pela indiferença das pessoas ensimesmadas nos seus mundos e distanciadas em relação aos vizinhos ou ainda pelo comodismo da  polícia, que não tem  interesse em prevenir ou mesmo de solucionar certos casos. O projeto coloca o espectador involuntário e cúmplice de mortes em larga escala, similares aos crimes cotidianos que assistimos passivamente no noticiário da televisão.(Kleber Torres)


Ficha técnica
Título Original: A casa que Jack The House That Jack Built
Direção e Roteiro: Lars Von Trier
Elenco: Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman
Ano:   2018
País:  Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Suécia
Duração:      2 Horas 32 Minutos