segunda-feira, 28 de outubro de 2024
O humor e loucura no hiato entre as culturas primitivas e a civilização
Ao narrar a história de Xi, interpretado pelo nativo N!Xav - um membro da tribo San, bosquímanos que vivem no deserto do Kalahari, na África do Sul -, cuja vida muda radicalmente quando encontra uma garrafa de Coca-Cola que cai casualmente de um avião e milagrosamente, não se quebra, o filme "Os Deuses Devem Estar Loucos"(1980), levanta uma série de reflexões sobre o impacto sobre a chegada da modernidade em sociedades primitivas e a absurda complexidade da vida civilizada e urbana, com seus conflitos sociais, culturais, étnicos, políticos e ideológicos. Dirigido por Jamie Uys, que explora uma série de ‘gags’ nas diversas sequências, o filme é em essência uma comédia satírica, que usa o choque cultural entre selvagens e civilizados no mundo moderno para explorar questões profundas, mas com bom humor e romantismo, sobre a civilização, o consumismo, a anomia e a alienação tecnológica.
Construído como uma espécie de documentário, o filme parece, numa primeira vista, uma comédia leve e ingênua, com situações que beiram o absurdo, com Xi – integrante de uma tribo de bosquímanos nômades, que sobrevivem pacificamente mesmo sem leis e sem chefes, da caça e da coleta de furtos numa região desértica e com poucas reservas de água - tentando devolver a maldita garrafa aos deuses indo para isso se preciso ao fim do mundo. Nesta viagem, ele acaba se deparando com um confronto entre guerrilheiros que lutam contra um governo autocrático ou o cientista atrapalhado Andrew Steyn (Marius Weyers) envolvido em uma série de desventuras cômicas com a sua paixão Kate Thompson (Sandra Prinsloo).
O humor do filme é ácido e profundamente crítico, faz rir e, ao mesmo tempo, expõe as contradições do mundo civilizado, onde objetos insignificantes, como uma garrafa de vidro branco, que parece água, mas é duro, podem transformar a vida de uma comunidade pacífica de selvagens em um caos de rivalidades e confusão, gerando sentimentos de posse e conflitos para pessoas que consideravam que Deus colocou as coisas na terra simplesmente para serem usadas. A garrafa, que para os San é uma novidade inusitada, traz para eles os males da posse e do desejo para pessoas sem o senso de propriedade, que conviviam apenas com árvores, mato e animais, refletindo ao mesmo tempo uma crítica mordaz à sociedade de consumo e às relações econômicas ou políticas que conduz aos conflitos inevitáveis entre grupos antagônicos.
O filme desenha um contraste claro entre a pureza da vida no deserto do Kalahari e o caos do mundo urbano, marcado pela violência, ganância, desordem e conflitos pelo poder político e econômico. Para Xi e seu povo, a vida é simples, centrada na sobrevivência e na harmonia com a natureza.
Já a sociedade moderna, que fica a 60 milhas das comunidades aborígenes, é retratada principalmente através das peripécias de Steyn e Kate Thompson, que é caótica e cheia de complicações como as relações interpessoais no mundo civilizado. Uys parece questionar a verdadeira evolução da civilização ocidental em relação a um povo sem calendário e para quem todos os dias são domingo ou quem sabe, segundas ou terças feiras, sugerindo que, apesar de toda a tecnologia e aparente sofisticação dos civilizados, o homem moderno perdeu a simplicidade e a conexão com o essencial, com a própria natureza e a essência fundamental das coisas.
A perspectiva de Xi é tratada com dignidade e respeito, e o filme evita cair em um olhar condescendente para com a sua cultura, para um homem que queria saber porque os deuses lhe mandaram aquele artefato, o qual poderia ter mil e uma utilidades, inclusive como instrumento de sopro a partir do seu gargalo ou servindo como um brinquedo para crianças da tribo. Vale observar que garrafa de Coca-Cola é um símbolo do consumo de massa e da globalização na sociedade ocidental e torna-se no filme uma metáfora poderosa da invasão cultural, trazendo à tona um problema: a destruição de modos de vida tradicionais pelo materialismo e objetos de consumo mesmo sem o líquido do refrigerante.
Na comunidade dos bosquímanos, a garrafa faz surgir a dipsuta, o ódio e a violência na disputa da sua posse e, ao ser jogada para cima numa primeira devolução tentada por XI, o artefato retornou e caiu sobre sua filha que acabou desacordada quando o objeto caiu sobre a sua cabeça. Desiludido, ele decide enterrar a garrafa, e naquele dia, cessou a conversa e o riso no pé da fogueira da comunidade nativa. Mas, uma hiena farejou o sangue e desenterrou o objeto maligno,que acabou encontrado por outra criança da tribo, gerando uma nova disputa na tribo.
Estes problemas fizeram Xi tomar a decisão de levar a coisa miligna se preciso até o fim do mundo. Ao mesmo termpo ocorre um atentado terrorista no território onde o selvagem teria de transitar, e Xi tem seu primeiro encontreo com o mundo civilizado, ao se deparar com um animal barulhento – um carro -, que deixa como uma serpente, duas marcas de pneus em paralelo como rastro infinito no chão.
"Os Deuses Devem Estar Loucos" também levanta preocupações antropológicas sobre a forma como retrata os personagens indígenas. Xi se choca ao se defrontar com Kate Thompson, uma loura, a quem considera a coisa mais feia dos mundo, com seus cabelos esbranquiçados. A participação do nativo como protagonista e a maneira como ele e sua tribo são mostrados pode ser vista como uma romantização exagerada da vida primitiva dos aborígenes e uma redução dos bosquímanos a caricaturas exóticas. Xi achava, a princípio, que os brancos eram deuses.
De certa forma, o filme tende a reforçar estereótipos e bias, mostrando em contrapartida o homem urbano como um trapalhão desajeitado, que muitas vezes pesquisa sobre coisas sem interesse prático ou objetivo e o indígena é retratato como um ser ingênuo, reforçando dualismos simplistas sobre civilização e barbárie. Um exemplo é quando Xi mata uma cabra e acaba preso, por não compreender que o animal era propriedade de terceiros, sendo solto mediante um acordo.
A narrativa também pode ser criticada por não dar voz própria aos bosquímanos, com seu estilo narrativo que os coloca no contexto observados antropológicos ao invés de agentes centrais de suas próprias histórias ou das suas vidas. "Os Deuses Devem Estar Loucos" é frequentemente visto como um produto do período, com seu olhar colonial e ocidental sobre as culturas nativas. No entanto, sua capacidade de provocar discussões sobre o consumismo, a globalização e os efeitos da modernização sobre culturas tradicionais ainda ressoa até os dias de hoje, emergindo como uma obra divertida, mas provocativa e que nos convida a uma reflexão sobre o que é e os conceitos da civilização com todas as suas incongruências.
Com inteligência e através do humor, o filme convida o público a questionar os valores que moldam a sociedade moderna e a refletir sobre o impacto que o progresso com os seus artefatos pode ter sobre culturas que vivem isoladas e em harmonia com o meio ambiente. "Os Deuses Devem Estar Loucos" continua sendo relevante por sua crítica aos conflitos da vida moderna e ao imperialismo cultural gerando forte impacto ambiental que nos conduziu a guerras, à emissão de gases poluentes e gera os riscos de mudanças climáticas que parecem estar ocorrendo em escala global, mostrando ainda que a palavra-chave é sustentabilidade.(Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título Original: The Gods Must Be Crazy / Os Deuses Devem Estar Loucos
Direção e Roteiro: Jamie Uys
Elenco Principal: N!xau, Marius Weyers, Sandra Prinsloo, Louw Verwey, Michael Thys, Nick de Jager
Música : John Boshoff
Ano de Lançamento: 1980
País: África do Sul, Botsuana
Gênero: Comédia, Aventura
Duração: 109 minutos
Idioma: Africâner, Inglês, Nama
sábado, 19 de outubro de 2024
Dersu Uzala: uma lição de sustentabilidade e respeito à natureza
Considerada uma obra-prima sobre a relação sustentável do homem com a natureza, mesmo em condições climáticas adversas nas florestas e geladas estepes siberianas, o filme “Dersu Uzala” marca um ponto de inflexão na carreira do cineasta japonês Akira Kurosawa, que rodou o seu primeiro filme fora do Japão através de uma colaboração com o estúdio Mosfilm, na antiga União Soviética. O filme é uma adaptação das memórias do explorador russo Vladimir Arsenyev, interpretado por Yuri Solomin um oficial e topógrafo do exército czarista, que comandava uma expedição exploradora na Sibéria e relata sua amizade com o nômade Dersu Uzala, interpretado por Maksim Munzuk, um caçador solitário das estepes siberianas, que tinha o conhecimento e o domínio da vida na natureza, como forma de sobrevivência e de coexistência para a preservação da flora e a fauna.
Como resultado emerge uma obra cinematógrafica que se destaca por sua profundidade emocional na relação entre pessoas, bem como pela beleza visual das cenas e pela profunda reflexão sobre a relação entre o ser humano e a natureza, o que resultou na conquista do prêmio maior do festival de Moscou (1975) e do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (1976). Tudo começa em 1902, quando ao encontrar por acaso numa trilha a Derzu Uzala – um caçador itinerante que vivia na floresta sozinho, depois de perder a mulher os filhos para varíola -, o capitão Arsenyev o convida para guiar a expedição e tem como resposta um lacônico: “eu preciso pensar”.
Depois de aceitar a missão, o novo guia começa a observar o grupo de soldados da expedição que o ridicularizam pela sua simplicidade e aparente inocência, observando que eles olham, mas não veem o que acontece ao seu redor. Ao constatar pegadas na floresta por onde passava a expedição, ele alertou sobre a presença de chineses na área e previu a existência de um abrigo nas proximidades, o que acabou confirmado algum tempo depois.
Para Derzu Uzala, o sol é um companheiro importante e se ele morrer, todos também irão morrer. Ele também fala dos seus deuses anímicos e das forças poderosas da natureza como a água, o vento e o fogo, que precisam ser respeitados. Ele critica também ao desperdício de munição dos soldados da expedição que treinavam tiro ao alvo com uma péssima pontaria, mas ao receber uma arma para atirar, prefere mirar e acertar na corda, para aproveitar a garrafa vazia usada como alvo e que para ele teria utilidade como cantil na floresta.
Akira Kurosawa, conhecido por seu domínio do cinema em preto e branco, mostrou a sua genialidade ao explorar com o requinte o uso cores num filme colorido, revelando os cenários das vastas e selvagens paisagens da Sibéria capturadas com uma atenção aos detalhes e exalando uma beleza quase poética nas imagens. As tomadas de florestas densas, vastas planícies e montanhas geladas são tratadas com a mesma reverência que Kurosawa deu às paisagens humanas em filmes como Ran – uma adaptção oriental da história do Rei Lear, de Shakespeare - e Os Sete Samurais, transformando a natureza em um personagem poderoso, contrastando com a insignificância do homem frente a ela e revelando sua imponência e imprevisibilidade.
Outra sequência importante na primeira parte do filme, que é dividido em dois blocos temporais entre 1902 e 1907. O primeiro de 1902, quando participa da expedição exploratória do exército tzarista e numa sequência, ele e o capitão se perdem numa planície depois que um vendaval apagou os seus rastros na areia. Como anoitecia e as temperaturas na estepe caem a níveis que colocam em risco a sobreviência humana, Dersu Uzala improvisa um abrigo com a vegetação que consegue cortar antes do anoitecer, salvando a sua vida e do seu chefe.
Nesse incidente, ele fala ao capitão sobre a insignificância do homem diante das forças da natureza e recusa o convite de ir com o mesmo para a cidade, onde não tem uma casa e nem referenciais sobre a vida urbana. Ao invés de receber o salário em dinheiro, ele prefere uma doação em munição e alimentos.
Cinco anos depois, Vladmir Arsenyev volta a Sibéria chefiando uma outra expedição no período da primavera de 1907, quando começa o degelo, gerando enchentes nos rios, com lama em profusão nas trilhas e um calor intenso. Por acaso, o grupo reencontra com Dersu Uzala que volta a servir de guia para os levantamentos topográficos da região. O caçador condena a caça predatória por homens que procuravam apenas recolher as peles e dentes, deixando para trás a carcaça apodrecida de animais. Ele também condena bandidos que assaltavam e asssinavam as vítimas de sequestros na área rural, mas começa a apresentar sinais de perda da acuidade visual deixando-o impedido de ver com nitidez animais, coisas e objetos circundantes, inviabilizando sua vida como caçador.
Com estas limitações agravadas pela velhice, o caçador aceita o convite de Arsenyev que o recebe em sua casa junto com a família. Como um estranho no ninho, Derzu Uzala não se adequa a viver num quarto mesmo com janela e não pode dormir na rua ou nos jardins da cidade onde seria preso por vadiagem. Ele também questiona o viver urbano, criticando a compra de água nas mãos de um aguadeiro para abastecer a casa do seu protetor. Ao ver a compra de lenha para aquecer o imóvel, ele pega um machado e derruba uma árvore num jardim da cidade, mas acaba preso, sendo liberado com intervenção do capitão, de quem despede para voltar a viver na floresta, depois de receber uma arma nova, o que principia a sua morte de forma trágica.
O ponto central da narrativa do filme é a relação entre dois homens de mundos radicalmente diferentes: Arsenyev, um militar russo, de origem urbana e Dersu Uzala, o nômade que vivia em harmonia com a natureza retirando da floresta o essencial à sua sobrevivência. A conexão entre esses personagens é construída lentamente, com um respeito mútuo que transcende as barreiras e às limitações culturais. Já a simplicidade e sabedoria de Dersu Uzala contrastam com a formação e a rígida disciplina militar de Arsenyev, e ao longo do filme, essa amizade se amplia e revela uma visão profundamente humanista de um diretor considerado um dos mais influentes da história do cinema e que nos legou 30 filmes muitos deles antológicos.
Dersu, com sua humildade e conhecimentos da vida selvagem, parece quase como um xamã, compreendendo os ritmos da natureza de maneira que os personagens "civilizados" nunca poderiam. Ele é um símbolo da pureza do homem não corrompido pela industrialização e pelas convenções sociais, mas também um retrato melancólico de um modo de vida que está desaparecendo com o avanço da civilização, o que gerou os conflitos anômicos e a inadequação que acabaram resultando na sua morte.
Uma das maiores virtudes de Dersu Uzala, cujo roteiro foi assinado por Kurosawa e Yori Nagibin a partir de uma biografia de Vladmir Arsenyev, é propor reflexão sobre o conflito entre a vida moderna e o ambiente natural. Dersu, sendo um filho da floresta, vive em harmonia com seu entorno, mas sua forma de vida começa a entrar em choque com o mundo moderno representado pelos exploradores russos e chineses gerando uma forte tensao.
O filme, que é contemplativo e tem um ritmo lento, explora questões filosóficas sobre o isolamento, a passagem do tempo e o impacto da modernidade na alma humana. Kurosawa constrói uma reflexão ponderada sobre a impermanência das coisas, em que o próprio Dersu representa o espírito indomável que, com o tempo, é tragicamente esmagado pela inevitabilidade das mudanças inexoráveis, mas que nos colocam hoje diante do impacto da ação predatória do homem com efeitos no meio ambiente o que se reflete no aquecimento global e em mudanças climáticas que preocupam e afetam a todos nós.(Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título Original: Дерсу Узала (Dersu Uzala)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa e Yuri Nagibin (baseado nas memórias do explorador Vladimir Arsenyev)
Elenco Principal: Maksim Munzuk, Yury Solomin, Svetlana Danilchenko, Aleksandr Pyatkov, Vladmir Kremena, Dimitri Korskokov, Mikail Bychkov, Sümönkul Tschokmoro e Igor Sykra
Música: Isaak Shvarts
Fotografia: Asakazu Nakai e Yuriy Gantman
Produção: Akira Kurosawa (Japão) e Mosfilm (União Soviética)
Gênero: Drama / Aventura / Biografia
Duração: 144 minutos
Lançamento: 1975
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