domingo, 10 de novembro de 2024
A dupla face de um dilema político, social e existencial
Mesmo sem uma política nacional de segurança pública definida com a integração de ações entre União, Estados e Municípios, o governo brasileiro reagiu com rapidez através do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski ao condenar a venda de armas de fogo logo após um incidente recente em que um atirador num surto psicótico matou o pai, o irmão, dois políciais militares e feriu outras oito pessoas, inclusive familiares, em Nova Hamburgo (RS), além de abater a tiros dois drones da polícia. Ele era esquizofrênico, mas tinha registro de Colecionador, Atirador e Caçador para porte de armas (CAC), segundo informações da Polícia Civil e Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que investigaram o caso.
O autor dos disparos, identificado como Edson Fernando Crippa, 45 anos, foi morto dentro de casa onde morava com a família após um tiroteio de nove horas contra policiais, que tentaram – sem sucesso - uma negociação que não se tornou possível. No imóvel, a polícia encontrou várias armas, muitas delas de grosso calibre e mais de 300 munições, o que serviu para reforçar o discurso do governo contra a venda de armas e questionar à instituição do porte de arma para pessoas com registro de CAC no país. A história nada tem a ver com o filme 400 contra 1(2010), de Caco Souza, sobre a origem do Comando Vermelho, em que um faccionado enfrenta as forças de segurança.
Neste diapasão, como em Itabuna no ano passado um outro homem num surto psicótico matou a facadas um interno em um albergue de idosos e doentes mentais, seria de bom alvitre abolir também a venda e a fabricação de facas, que também são instrumentos letais e oferecem risco à população mesmo sem necessidade burocrática de registro específico junto aos organismos de segurança.
O fato é que o debate sobre a venda de armas e a sua letalidade tem sido um tema recorrente nos Estados Unidos e também no Brasil, onde ocorrerm por ano uma média de 50 mil assassinatos, uma das maiores taxas de homicídio do mundo, representando uma média de 22,8 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. Cabe ainda observar que as facções do crime organizado operam a todo o gás com ações em todo o território nacional, exibindo armas de grosso calibre, sem necessidade de registro ou qualquer outra formalização e realizando atentados cinematográficos como o que resultou na morte do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach, envolvido com uma facção do crime organizado, executado no aeroporto de Guarulhos, na capital paulista, numa área de intensa movimentação de veículos e pessoas.
O caso do crime do Rio Grande do Sul e que ganhou repercussão nacional, envolve porém duas faces do problema e que precisam de uma atenção específica de governo. Ninguém discute que a polícia aparentemente enxuga gelo numa guerra desarticulada contra o crime organizado, uma vez que não há uma integração de ações entre o governo federal, estados e municípios, enquanto o crime está cada vez mais organizado, estruturado e usando até mesmo os sofisticados recursos da tecnologia digital para aplicação de golpes virtuais e mesmo monitoramento ou vigilância pelo sistema 24 x 7 das áreas onde atuam e operam as gangs criminosas.
Mas, se por um lado o governo se mostrou preocupado com o comércio de armas e munições, cujo controle caberia ao exército, polícia federal e em teoria do Ministério da Justiça, ganhando apoio de alguns setores da socidade civil organizada, por outro lado, nenhuma voz se levantou com relação à situação precária e falta de assistência aos esquizofrênicos no Brasil. Este é um grave problema de ordem política, psicológica e social, que se agudizou com o fechamento dos manicômios no país, os quais, teoricamente, deveriam ser substituídos por serviços de atendimento terapêutico, seja através de centros comunitários, núcleos de convivência e mesmo por unidades de tratamento ambulatorial, que na prática, considerada o critério da verdade, inexistem ou funcionam precariamente na maioria das cidades brasileiras.
Coincidentemente, o trágico incidente do Rio Grande do Sul ocorreu quando estava em exibição pelo Prime Video a série Irmãos Esquizofrênicos (Six Schizophrenic Brothers), um documentário de quatro capítulos, sobre uma família norte-americana em que seis dos 12 irmãos, filhos de Don e Mimi Galvin - uma família católica, de origem irlandesa e de classe média alta- , que manifestaram sintomas de esquizofrênia na transição para a idade adulta. A série explora a evolução das relações e das lutas internas dos personagens principais frente à esquizofrenia.
O primeiro capítulo mostra a família de 10 meninos e duas meninas, entre os quais Peter, Donald, Brian, Matthew e Jim, que já manifestavam os primeiros sinais de que algo estava errado ainda na juventude a partir do relacionamento entre si e com os irmãos menores. A esquizofrenia de um dos irmãos mais velhos começa a se manifestar com comportamentos incomuns e paranóicos, levando a conflitos e agressões aos irmãos mais jovens, contribuindo para desmoronamento da estrutra familiar.
No grupo, Peter, desmembra um cachorro na banheira da casa da família. Donald nos primeiros surtos, quebrava todas as janelas da casa, ele também abusou física e sexualmente de um dos irmãos, mas também foi abusado por um padre que frequentava a casa da família Galvin. Jim, manifestava os seus problemas mentais, sendo cruel com os irmãos mais jovens e Brian, já adulto, num surto psicótico, matou tragicamente à namorada e praticou suicídio logo em seguida. Um dos irmãos não esquizofrênico considera que os problemas fizeram desabar o mundo do que seria uma família de classe média até então teoricamente perfeita e estruturada.
O segundo capítulo aprofunda o debate sobre as dificuldades do tratamento e a luta constante contra o estigma da doença, que não era aceita pela família, a qual procurava esconder o comportamento bizarro dos filhos evitando possíveis internações. Os pais optavam por um atendimento ambulatórial e mostrando aos viznhos um núcleo familiar perfeito, cujo patriarca era um oficial graduado da aeronáutica e tinha inclusive doutorado.
Mas os problemas se tornam mais intensos e visíveis no decorrer do tempo, resultando em conflitos e situações constrangedoras para a família, que mesmo assim procurava evitar a internação dos filhos, um dos quais o psiquiatra considerou perigoso e recomendou uma internação que nunca chegou a ocorrer. O capítulo também revela o impacto emocional da doença, da medicação que perdia efeito ao longo do tempo e dos tratamentos psiquiátricos ambulatoriais com suporte da Academia da Força Aérea, o que contribui para um desgaste mental e emocional para a desestruturação todo o núcleo familiar, o que se concretizou após as mortes do pai e da mãe dos 12 irmãos.
O terceiro capítulo tem como foco o ponto de inflexão na dinâmica familiar, quando os pais percebem a dimensão do problema, que é permanente e requer apoio contínuo. O foco recai sobre a reconstrução das relações familiares, e os irmãos passam a confrontar seus próprios medos e limitações. As terapias em grupo e as conversas nem sempre amigáveis e tensas se tornam uma tentativa de estabelecer um equilíbrio na convivência entre irmãos e lidar com os traumas resultantes de uma tragédia familiar.
O último capítulo da série traz uma sensação de esperança para os irmãos doentes e para os próprios pacientes com a enfermidade em todo o mundo. A convivência com a esquizofrenia, embora ainda desafiadora, se torna mais compreendida com a identificação pelos pesquisadorees de um gene ligado à doença em alguns membros da família, após o sequenciamento do genoma dos Galvin. A pesquisa também permite a definição de instrumentos para avaliar como esse gene recessivo pode ser afetado inclusive pelo ambiente externo e como eventos traumáticos podem desencadear a esquizofrenia.
Com isso, os irmãos e seus familiares – muitos dos seus descendentes sofrem de ansiedade por medo da esquiszofrenia – temendo uma doença que afeta o pensamento e as sensações, assim, aprendem a desenvolver uma nova rotina, aceitando a condição como parte da vida e mantendo-se alerta para possíveis desvios de comportamento.
Peter, por exemplo, se considera “curado” , mas continua tomando regularmente os médicamentos recomendados pelos médicos que o acompanham. No passado, ele foi detido por agressão a dois policiais, mas diz que nunca foi preso, está limpo e hoje trabalha como paramédico. Ele se identifica com São Pedro, um homem santo e que foi pregado na cruz. Para o seu médico, ele é um paciente que está estabilizado.
No seu histórico pessoal, ele permaneceu estável por dez anos, até 2002, quando apresentou problemas e em 2004, em função da resistência adquirida aos remédios que utilizava, Peter passou a ser sumbetido a uma terapia eletroconvulsiva (ECT), com uso de eletrochoque e, após cada sessão, diz que fica como um homem novo em folha. Também seu irmão Matthew não se considera doente e vive como ele numa comunidade terapêutica.
Hoje, Donald, Peter e Matthew viovem em casas de repouso, com permanente acompanhamento médico. Os pais, antes de morrer, pediram aos demais irmãos que não os abandonasse, mas eles não tem conseguido e a família se dividiu ao longo dos últimos anos. Em março de 2022, um grupo de irmãos se reuniu em Colorado Springs para uma avaliação da situação do núcleo familiar fragmentado e da situação dos irmãos ainda vivos, com esquisofrenis.
A série termina com uma mensagem de esperança mostrando que, mesmo nas situações mais difíceis, é possível encontrar alguma paz e equilíbrio, com uma saída viável através da ciência e do avanço na produção de medicamentos ou desenvolvimento da terapias para o atendimento à esquizofrênicos, o que se complementaria com a adoção de políticas públicas adequadas. Já a violência brasileira parece não ter cura, enquanto a própria sabedoria popular na terra do Alienista, de Machado de Assis, nos ensina que de médico e louco cada um de nós tem um pouco e alguns, partecem ter um pouquinho a mais. (Kleber Torres)
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