terça-feira, 16 de setembro de 2025

A busca de um espelho que reflete a essência da alma humana

Diferentemente de “2001 - Odisséia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick, quetem como referência o espaço e o tempo como caminhos para o conhecimento, o filme "Solaris"(1972), dirigido por Andrei Tarkovsky, é também uma obra-prima da ficção científica com forte carga filosófica e emocional, levando o espectador uma profunda reflexão sobre o homem e a própria existência através de um jogo espelhos. Os dois filmes produzidos numa mesma época, também têm como cenários similares o espaço curvo, iluminado e asséptico das naves espaciais. Tudo começa quando o psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis) é enviado a uma estação espacial que orbita o misterioso planeta Solaris, com a missão de avaliar após uma série de incidentes, o estado mental dos cientistas que ali trabalham. Ao chegar, ele descobre que um dos tripulantes cometeu suicídio, após deixar uma gravação em vídeo sobre o que estava ocorrendo na nave espacial e os outros dois estão à beira da loucura, com equipamentos desativados, um deles escondendo uma criança que mantém afastada dos outros tripulantes. O planeta Solaris, coberto por um oceano aparentemente consciente, começa a materializar figuras humanas extraídas das memórias mais profundas dos astronautas, inclusive Hari(Natalya Bondarchuk), a esposa falecida de Kelvin, que aparece viva na estação. Esse momento revela o conflito entre razão e emoção, pois mesmo sabendo que Hari é uma materialização gerada por Solaris, Kelvin se vê emocionalmente envolvido, questionando o que define o amor e a identidade ao declarar : “Ela não é Hari. Ela é uma construção. Mas eu a amo,” para concluir que se ela é uma ilusão, ele igualmente o seria. O filme representa um mergulho nas complexidades da mente humana e das relações sociais, explorando temas como culpa, luto, amor e a impossibilidade de compreender o desconhecido. Tarkovsky usa a ficção científica não para mostrar tecnologia, mas para investigar a alma a partir de um viés filosófico e literário que se justifica nas cenas da biblioteca da estação espacial, como também na casa de um dos personagens em terra onde há livros em profusão. Há quem considere o filme com 166 minutos de duração uma meditação cinematográfica sobre a condição humana e na cena antológica da biblioteca onde há uma citação sobre “o homem precisa de homem,” fica expressa a ideia de que, diante do desconhecido, o ser humano busca conexão, não com o cosmos, mas com outros seres humanos. A sequência é reforçada pela imagem de D. Quixote, personagem literário que lutou contra moinhos de vento num hiato entre a razão e a loucura. Enquanto Tarkovsky questiona se a consciência artificial pode ter alma ou, se somos apenas projeções de nossas emoções. Uma das frases mais associadas ao filme destaca que “não precisamos de outros mundos, precisamos de espelhos,” revelando que a questão é explorar o espaço, mas o interior humano com toda a sua complexidade. Kelvin também faz referência ao fato de que perdemos a nossa percepção do cosmos e complementa lembrando que “o sentido da vida e outros temas pouco preocupam ao homem feliz” Ao transformar a ficção científica em poesia filosófica Tarkovsky coloca em questão problemas que preocuparam a Dostoiévski e a Nietzsche, que desconfiava da pretensão da ciência de explicar tudo racionalmente e buscava uma dimensão estética entre o apolíneo e o dionisíaco. Em Solaris, o planeta desafia qualquer tentativa de compreensão lógica, expondo os limites da ciência diante do mistério e do irracional, algo que Nietzsche também abordava ao valorizar o instinto e o inconsciente e a capacidade de superação do homem através de um Super-homem. Em paralelo, a repetição das aparições de Hari pode ser vista como uma forma de "eterno retorno" emocional e Kris é forçado a reviver sua culpa e dor, confrontando o passado de forma cíclica e inevitável. O personagem considera que o sofrimento sombreia a vida e nos enche de ssuspeitas até mesmo talvez sobre a realidade objetiva, afinal o homem segundo ele, ama o que pode perder. Embora Tarkovsky não fale em “Übermensch”, o Super-homem, o filme sugere que o confronto com Solaris exige uma transformação interior, uma superação da condição humana limitada, algo que Nietzsche também propunha como caminho para transcender o niilismo. Já a questão do espelho remete à ideia nietzscheana de que a verdade não é algo externo a ser descoberto, mas sim uma construção humana, muitas vezes um reflexo de nossos próprios desejos e medos das pessoas. O próprio escritor Stanisław Lem, autor do livro original que resultou no roteiro do filme, considera que Tarkovsky desviou da proposta científica e filosófica do romance para criar algo mais introspectivo e espiritual. Para ele, o cineasta fez “Crime e Castigo” em vez de Solaris. Isso também aproxima o filme de Dostoiévski, outro pensador que influenciou Nietzsche profundamente. numa obra que dialoga com o niilismo, a introspecção e a crítica à razão, todos temas caros ao pensador alemão. Tarkovsky leva ao filme uma espiritualidade que lembra o misticismo russo presente em Dostoiévski. A ideia de que o ser humano precisa se reconciliar com sua alma, e que o amor pode ser redentor mesmo diante do absurdo, é uma ponte direta entre os dois autores. Tarkovsky, que morreu em 1986, aos 54 anos e se consagrou com um dos mais influentes cineastas russos, chegou a dizer que queria fazer filmes que falassem à alma, não apenas à razão. Em Solaris, ele transforma a ficção científica em um espelho da própria alma humana e ensina que a felicidade é um conceito antiquado, pois a verdade não é objetiva, mas uma construção humana. Ao mesmo tempo confronta a condição dos personagens ao cenário das conquistas espaciais ou de cidades modernas com grandes edifícios e estradas e avenidas sem fim até chegar ao campo com seus rios e lagos, o que leva o espectador a indagar: seria o final da busca de um espelho que reflete a essência da alma humana ou não? (Kleber Torres) Ficha Técnica Elemento Detalhes Título original: Солярис (Solyaris) Direção: Andrei Tarkovsky Roteiro: Andrei Tarkovsky e Fridrikh Gorenshtein, baseado no romance de Stanisław Lem Elenco: Donatas Banionis, Natalya Bondarchuk, Jüri Järvet (Snaut), Anatoli Solonitsyn (Sartorius) Trilha sonora: Eduard Artemyev Direção de arte: Mikhail Romadin Fotografia: Vadim Yusov Montagem: Lyudmila Feiginova País de origem: União Soviética Ano de lançamento: 1972 Duração: 166 minutos Gênero: Drama, Ficção Científica Prêmios e Reconhecimento: Festival de Cannes (1972): Prêmio Especial do Júri e Prêmio FIPRESCI Indicado à Palma de Ouro