quinta-feira, 9 de outubro de 2025
O eterno duelo entre o bem e o mal através da ciência e da fé
O eterno duelo entre o bem e o mal através da ciência e da fé
Considerado um cult movie, “Fausto – um conto popular alemão” (1926), de Friedrich Wilhelm Murnau, um dos maiores realizadores do cinema mudo e um dos expoentes do expressionismo, transforma a lendária disputa entre o bem e o mal numa parábola visual que unifica mito, religiosidade popular e espetáculo cinematográfico ensinando que o maior milagre é a liberdade do homem. O filme é um clássico na história do cinema e equilibra um roteiro de tom trágico com invenções formais que ampliam o poder expressivo do cinema mudo, oferecendo uma leitura onde a dimensão moral e bíblica atravessa cada opção estética complementadas com utilização de efeitos especiais e cortes sequenciais.
O roteiro adapta múltiplas fontes da lenda de Fausto, organizando a ação em episódios claramente demarcados que vão da provação coletiva, com a eclosão de uma peste mortal e o sofrimento dos personagens até a tentação individual a partir da constatação de que ninguém pode resistir ao mal e ao desfecho redentor através do amor e do perdão. A progressão é episódica, quase teatral, privilegiando sequências intercaladas que intensificam o caráter mítico da trama.
Fausto (Gösta Ekman) funciona como protótipo do sábio devotado ao saber que se vê testado pela impotência diante do sofrimento da população numa epidemia letal e acaba cedendo à tentação de Mefistófeles (Emil Jannings), que encarna diabolicamente a voz do cinismo e da sedução. O conflito moral é tratado como aposta cósmica, o que amplia a dimensão simbólica dos atos dos personagens a partir da dúvida religiosa, da crise entre razão e fé, da corrupção por desejo de poder ou da volta à juventude, enquanto a possibilidade de redenção atravessa transversalmente o roteiro. O filme também embute uma crítica social implícita, quando a comunidade reage ao milagre, aos crimes e ao estigma do pacto, mostrando como o coletivo julga e exclui através de sanções sociais.
Murnau, que morreu ainda jovem aos 42 anos num acidente automobilístico nos Estados Unidos, explora com profundidade o tema, construindo camadas e enquadramentos dinâmicos para transformar cenários em estados de alma. Movimentos de câmera e composições diagonais criam tensão moral e psicológica que envolve aos personagens com dramaticidade. Alternância entre planos largos de plateia/aldeia e closes dramáticos intensifica a dimensão épica da obra, sem perder a intimidade do drama. A montagem episódica reforça o caráter folclórico e ritual do conto popular eternizado por Goethe através da literatura.
Os críticos especializados consideram que Murnau integra efeitos, cenografia e performance coreografada com uma unidade expressiva rara para a época, antevendo o cinema como arte total e multimídia. Tecnicamente, o filme emprega miniaturas, matte paintings, sobreposições e exposições duplas para criar aparições demoníacas, transformações físicas e panoramas sobrenaturais, gerando tensão e suspense. Esses recursos são usados de forma dramática, não apenas espetacular, para materializar a tentação e o sobrenatural, como ocorre com a transformação de Fausto na sua volta à juventude ou após o rompimento do pacto com Mefistófeles, bem como nas cenas da peste e as manifestações infernais que não aparecem como meros truques, mas pontos de virada psicológica e moral dos personagens. Assim, os efeitos se harmonizam com a atuação expressionista e a iluminação contrastada, criando estados visuais que comunicam corrupção, delírio e redenção.
Como resultado, Murnau converte debate teológico e citações biblicas em imagens expressivas onde o mal aparece como sedução performática e cenário alterado; o bem se manifesta em gestos de sacrifício e na presença do arcanjo até o enfrentamento final com Mefistófeles. A tensão entre responsabilidade ética e desejo pessoal é dramatizada em cada decisão de Fausto que se apaixona perdidamente por Gretchen (Camilla Horn). O filme evita soluções simplistas; a salvação é representada como resultado de luta moral e intervenção transcendente ao mesmo tempo. Essa ambiguidade dá à obra uma força dramática duradoura que a fez prevalecer ao longo tempo.
Fausto é uma síntese magistral do cinema expressionista alemão e do empreendimento narrativo de Murnau num roteiro que transforma mito em crise contemporânea, o que envolve avanços da ciência e inovações técnicas voltadas ao sentido dramático, enquanto os efeitos especiais que servem a emoção e a uma cenografia que pensa o mundo como conflito moral.
O resultado é um filme que continua a funcionar como estudo sobre tentação, culpa, redenção e fé, revelando a demonstração do potencial do cinema para representar abstracções éticas por meios puramente visuais ou estéticos, ensinando ao mesmo tempo que a morte está à mercê de todos e a vida é transitória apesar das tentações cotidianas que aparecem.(Kleber Torres)
Ficha técnica
• Título original: Faust — Eine deutsche Volkssage (Fausto – um conto popular alemão)
• Direção: F. W. Murnau
• Roteiro: Hans Kayser e Gerhart Hauptmann inspirado na lenda de Fausto e na obra de Johann Wolfgang von Goethe
• Elenco: Emil Jannings (Mefistófeles); Gösta Ekman (Fausto); Camilla Horn (Gretchen); Frida Richard; William Dieterle; Yvette Guilbert; Eric Barclay
• Fotografia: Carl Hoffmann
• Gênero: Drama / Fantasia / Terror
• País: Alemanha
• Duração: 116 minutos.
• Ano de produção: 19261
• Produtora: UFA (Universum Film AG)
• Idioma: Filme mudo com intertítulos em alemão
Assinar:
Postagens (Atom)