quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O homem que traiu a máfia e conseguiu sobreviver

] Transcendendo os limites de um simples documentário, o longaO Traidor (Il Traditore) acompanha a trajetória de Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), mafioso siciliano que, após ser preso no Brasil nos anos 1980, decide colaborar com a Justiça italiana. Ele rompe um código de silêncio omertá, em que se paga com a morte, tornando-se o primeiro grande delator da Cosa Nostra, o que resultou na prisão e condenação de mais de três centenas de integrantes da organização criminosa italiana. O cineasta Marco Bellocchio articula a história com uma estética que remete ao clássico O Poderoso Chefão, mas evita a glamorização do crime, optando do mostrar a máfia em sua brutalidade, sem o verniz romântico. Ele também denuncia a tortura de Buscetta por policiais brasileiros que efetuaram a sua prisão no Rio de Janeiro, onde vivia com a segunda mulher Maria (Maria Fernanda Cândido). A montagem paralela entre assassinatos na Sicília e um batizado no Rio de Janeiro é um dos momentos mais emblemáticos, contrapondo sacro e profano, vida e morte, numa sequência similar a um dos filmes da série O Poderoso Chefão. O filme ganha relevância para o público brasileiro ao incluir cenas rodadas no Rio de Janeiro, onde Buscetta viveu parte de sua trajetória criminosa e montou toda uma rede de proteção. Cabe observar, que no ano da sua prisão foi preso em Itabuna um sicário da máfia, que vivia modestamente como dono de um pequeno bar anexo a um posto de gasolina na avenida Amélia Amado, esta história não consta do roteiro do mfilme e o fato é que essa ambientação reforça a dimensão transnacional da máfia, como suas ramificações se estendiam para além da Europa, chegando a cidades do interior do Brasil. O ator Pierfrancesco Favino, ganhador do prêmio italiano David di Donatello como Melhor Ator, tem uma atuação primorosa, captando as ambiguidades de Buscetta: um homem dividido entre o código de honra mafioso e a necessidade de sobrevivência de quem viu a morte de filhos, parentes e protegidos. Ele também diferencia nos seus depoimentos ao juiz Giovanni Falcone (Fauto Russo Alesi) a entrega de informações criminosas, sem entrar nos aspectos familiares de cada um dos denunciados. “O Traidor” não é apenas um filme sobre crime organizado; é uma reflexão sobre uma questão ética e moral, ou seja, a traição como ato político e uma questão de sobrevivência para salvar os seus familiares ameaçados pela Máfia. Assim, Buscetta não trai apenas seus comparsas, mas também a própria ideia de silêncio que sustentava a máfia como organização criminosa. Ao expor os bastidores da Cosa Nostra, o longa revela como o poder se constrói e se desmorona diante da palavra ou da revolta do seus integrantes, fazendo tudo cair como um castelo de cartas. O filme se destaca por sua sobriedade estética, evitando o espetáculo fácil da violência pela violência, e por sua capacidade de transformar uma história particular em metáfora universal sobre memória, justiça e identidade. Bellocchio nos lembra que a máfia não é apenas um fenômeno criminoso, mas um espelho distorcido das estruturas de poder que permeiam sociedades inclusive o Brasil com as suas facções que hoje ganham dimensão nacional e internacional, com a expansão dos seus raios de atuação e tentáculos permeados nos vários escalões do poder. En síntese, “O Traidor” mostra que o crime não compensa até certo ponto. A trajetória de Tommaso Buscetta evidencia que a vida na máfia cobra um preço altíssimo, com a perda da família, exílio, medo constante e a necessidade de trair o próprio código de silêncio para sobreviver. O fato positivo é que ele morreu em casa de um ataque cardíaco e não nas mãos de pistoleiros ou sicários que vestidos de Papai Noel o intimidaram numa casa noturna nos Estados Unidos onde passou a viver com a família e depois sem ela, mas de onde saiu para prestar novos depoimentos e acareações. Como tudo é transitório fica a lição que dinheiro e o status conquistados pela máfia são efêmeros, além disso a violência destrói laços familiares e comunitários. Já a delação, embora traga algum senso de justiça, não apaga as perdas pessoais e materiais , dessa forma “O Traidor” é uma obra que funciona como alerta ético e moral, mostrando que poder e riqueza obtidos pelo crime vêm acompanhados de paranoia, solidão e tragédia, uma vez que a glória do mundo é simplesmente passageira. (Kleber Torres) Ficha Técnica: Título : Il Traditore / O Traidor Direção: Marco Bellocchio Roteiro: Marco Bellocchio, Ludovica Rampoldi, Valia Santella, Francesco Piccolo, entre outros Elenco : Pierfrancesco Favino, Maria Fernanda Cândido, Fabrizio Ferracane, Fausto Russo Alesi , Luigi Lo Cascio, Nicola Calì e Goffredo Bruno Direção de Fotografia: Vladan Radovic Montagem: Francesca Calvelli Trilha Sonora: Nicola Piovani Direção de Arte: Andrea Castorina Figurino: Daria Calvelli Duração: 145–153 minutos Gênero: Biografia, Drama, Policial Países de Origem: Itália, França, Alemanha, Brasil Ano : 2019

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Um instrumento denúncia para evitar o esquecimento da morte

No mesmo período em que ganhou repercussão internacional o confronto no Rio de Janeiro entre policiais e narcoterroristas que resultou em 121 mortes, inclusive a de quatro policiais, com a apreensão de quase 100 fuzis, em outubro de 2025, a HBO exibiu o documentário Antes que nos esqueçam(Antes de que nos olviden), dirigido por Matías Gueilburt. O filme aborda jornalisticamente a escalada da violência e da guerra às drogas no México, com registro de 121.683 mortes violentas nos seis anos da gestão do presidente Felipe Calderon, no período entre 2006 e 2012. Com o mesmo título de uma canção de Alfonso Hernandez Estrada, o filme estreou em 2014 e tem cerca de 84 minutos, com o resgate de imagens e depoimentos diversos. Ele adota um tom de um ensaio jornalístico direto e informativo que busca tanto relatar quanto refletir sobre as causas e consequências da violência através de depoimentos de jornalistas, escritores, artistas e familiares da vítimas, com o objetivo de construir um panorama humano e político do conflito que se revelou uma tragédia letal por envolver policiais, milicianos e narcotraficantes em milhares de assassinatos num verdadeiro ciclo de violência, impunidade e terror. Além de mostrar o narcotráfico como uma estrutura montada numa espécie de economia paralela para lavagem de dinheiro através de empresas de fachada, a escolha de vozes de jornalistas experientes, escritores e figuras pública cria um contraponto entre análise crítica e testemunho emotivo. Isso dá ao filme credibilidade investigativa sem perder o foco da dimensão humana do problema, além de ao mesmo tempo revelar que a banalização da violência e a forma como instituições políticas, impunidade e interesses econômicos alimentam o ciclo de conflito eliminando de certa forma a própria identidade de uma nação. Como documento sobre a violência mexicana, Antes que nos esqueçam funciona bem como peça de conscientização política e como recurso para debates públicos e acadêmicos. Sua força maior é humanizar estatísticas e lembrar ao espectador da dimensão historica do conflito. As ações mobilizaram na época um contigente de 45 mil soldadados, com o registro de 10 mil sequestros, 92 mil assassinatos, 26 mil desaparecimentos de vítimas, o que forçou 250 mil pessoas a abandonarem as cidades ou bairros onde viviam, que acabaram esvaziados com um monte de habitações e veículos abandonados. Uma outra face dessa escalada, é que a Ciudad Juarez, com 2,6 milhões de habitantes e um das maiores centros urbanos do México, registrou em 2010 nada menos que 3.622 assassinatos enquanto El Paso, com 680 mil habitantes, no outro lado na fronteira do Texas, nos Estados Unidos, contabilizava apenas cinco assassinatos. A mulher de uma das vítimas conta desolada que mora no quarteirão das viúvas, num bairro onde a maioria dos homens foram assassinados numa guerra marcada por uma violência brutal, que se espalhou através das diversas províncias mexicanas. No filme fica a constatação que o tabu de sangue e homicídio é rompido quando se quebram os vínculos entre governo e a sociedade, o que levou os roteiristas a comparar a escalada letal de violência com as do período da revolução mexicana, no início do século XX, quando Emiliano Zapata e Pancho Villa lideraram a luta contra a ditadura de Porfírio Diaz, em defesa de reformas sociais. Antes que nos esqueçam evidencia tama relação promíscua entre autoridades do governo e traficantes ou grupos paramilitares, além de crimes cometidos também por agentes do governo extrapolando os limites da repressão ou para obtenção de lucros pessoais. Já o colapso das forças governistas no enfrentamento do crime organizado fica evidenciado no filme, com o registro de 7.775 denúncias contra integrantes das Forças Armadas envolvidas no confronto contra traficantes e paramilitares. A violação de direitos humanos também acabou respingando na imagem do próprio exército mexicano. Outra evidência é de que não adianta simplesmente, matar ou prender lideranças das orcrims, pois na suas escalas imediatamente inferiores existem outros cinco elementos capacitados para substituí-los e manter a continuidade das operações dos grupos criminosos e facções. Num dos depoimentos, um dos familiares de vítimas confessou desolado que todos estavam abandonados e desamparados. Já o presidente Felipe Calderon considerou as 100 mil mortes durante o seu perído de governo como efeitos colateirais do processo. Neste mesmo período os Estados Unidos estavam infestados de drogas, um negócio lucrativo, que movimenta nada menos que US$ 50 bilhões de dólares por ano. Em síntese, Antes que nos esqueçam é importante para quem quer entender como memórias, impunidade e violência se entrelaçam na contemporaneidade mexicana e como o processo passa a ser assimilado pelos pessoas, confundindo-se como parte da sua cultura ou mesmo do destino. O filme termina com o chamamento dos nomes dos mortos presentes nas memórias dos entes queridos e que temporariamente restaram esperando pelo menos, que repousem em paz. (Kleber Torres) Ficha técnica Título original: Antes De Que Nos Olviden /Antes Que Nos Esqueçam Direção: Matías Gueilburt Roteiro: Tamara Florin, Matías Gueilburt, Pablo Galfre Participações: Paco Ignacio Taibo II; Marcela Turati; Jacobo Zabludovsky; Demián Bichir; Jorge Hernández (Los Tigres del Norte) e depoimentos de jornalistas, escritores e familiares de vítimas Ano: 2014 Duração: 84 minutos. País de origem: México Gênero: Documentário.