quarta-feira, 4 de outubro de 2023

 Um épico sertanejo sobre a luta metafórica entre o bem e o mal 

A fusão da lenda medieval da luta de São Jorge contra um dragão com a história de cordel sobre a Chegada de Lampião no Inferno, considerado um clássico do gênero, acabou resultando no filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969) , o primeiro longa-metragem a cores de Glauber Rocha (1939-1981), que conquistou o prêmio de melhor diretor no festival de Cannes e foi sucesso de crítica internacional. O filme, de 90 minutos, tem como um dos personagens centrais Antônio das Mortes, um matador de cangaceiros que apareceu em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). O Dragão da Maldade  é um épico e também em realidade uma obra metalinguística - uma característica do cinema novo -  e ao mesmo tempo essencialmente alegórica,  revelando  um universo do macrocosmo do sertão em que emergem coronéis  que se insurgem contra a proposta de reforma agrária, para evitar a perda de poder político e econômico num confronto envolvendo santos, cangaceiros, jagunços ou beatos com a sua religiosidade radical. O filme, que tem como  cenário Milagres, na Bahia, é considerado um dos 100 melhores do cinema nacional e chegou a ser censurado pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici, que o liberou mesmo após o Ato Institucional nº 5 (AI-5) devido à pressão dos diversos prêmios internacionais que conquistou. Como num filme de faroeste, Antônio das Mortes(Maurício do Valle) ) aparece vestindo uma capa tipo boiadeiro e atravessa a caatinga atirando em todas as direções. Enquanto isso, em Piranhas, o cangaceiro Coirana (Lorival Pariz), ocupa o centro da vila  e reúne-se na praça com moradores e o coronel Horácio (Jofre Soares), que divide o poder com o delegado Mattos (Hugo Carvana) e  sua mulher, Laura (Odete Lara), indiferente e omissa.  Numa referência alegórica  ao apocalipse, o que seria o  fim dos tempos ou uma revolução, o cangaceiro anuncia que voltou para enfrentar o dragão da maldade, que seria o símbolo do próprio establishment (sistema). O  discurso foi acompanhado pelo  professor (Othon Bastos) e pelo cego Antão (Mário Gusmão) que aparece como uma espécie de avatar de São Jorge e Oxossi. Ao mesmo tempo, Antônio das Mortes conta, em um monólogo  numa pequena venda, como encontrou Lampião que o convidou para entrar no cangaço, o que deixou Corisco enciumado. Corisco ainda propôs ao rei do cangaço matar Antônio das Mortes, o que foi recusado por Lampião dizendo que não, pois ele era um cabra macho. No desenredo da narrativa, Antônio das Mortes conta que acabou perseguindo aos cangaceiros e eliminando o suposto rival. Agora, ele volta ao sertão com sua capa, chapéu e rifle papo amarelo  para enfrentar os novos cangaceiros em Piranhas.  Nos preparativos para o confronto final, que no filme é comparado com a chegada de Lampião nos infernos, um clássico cordel de José Pacheco,  tendo como metáfora ao próprio o calor do sertão (inferno),  um velho coronel - o diabo - que questiona aos jagunços, a quem considera como mercenários os quais trazem mais problemas, se contrapondo ideologicamente ao delegado Mattos, seu aliado, que defende o combate à violência instaurada pelo cangaço e um modelo econômico agroindustrial. O delegado sonha se projetar na seara da política, com um discurso populista. Na sua estratégia de pacificação do sertão, o delegado apresenta  ideias reformistas. Ele pretende substituir os latifúndios improdutivos por fábricas visando gerar mais emprego e renda para a população. A sua visão se contrapõe com a do velho coronel que teme  perder suas terras, seus rebanhos e o poder que detém na comunidade. Mattos e Laura, que têm um caso amoroso, participam de uma sequência antológica no filme com uma canja de Carinhoso, de Pixinguinha. A música do filme tem a assinatura de Marlos Nobre e Walter Queiróz, que resgatam músicas do folclore e  de matriz africana, além de Sérgio Ricardo, que contribuiu na trilha sonora de Deus e o Diaboi na Terra do Sol e desta vez, com Antônio das Mortes, exaltando o matador de cangaceiros.  Em outra sequência, Coirana, diz para a Santa Bárbara (Rosa Maria Penna) que é hora de queimar os vivos e destruir as cidades. Nesse ínterim, beatos, jagunços  e cangaceiros voltam à pequena vila onde haverá o confronto de Coirana e seu grupo com Antônio das Mortes, que tem a ajuda do professor.  O cangaceiro anuncia “que homem vai virar mulher, mulher vai pedir perdão. Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai para a cadeia ". Antônio das Mortes tem dúvida  se Coirana é  um cangaceiro de verdade ou uma visagem. Na disputa, Coirana cai, é ferido e Santa Bárbara interfere impedindo que seja morto, o que conta com a condescendência do matador de cangaceiros. Ferido, Coirana é levado ferido para vila, onde o coronel temeroso argumenta que é um homem bom que se preocupa com a comunidade, iniciando a distribuição de farinha e carne seca para a população. Ele também critica o   governo que arrecada impostos e não manda dinheiro para nada. Gravemente ferido e deitado num balcão de bar, Coirana delira, nos estertores da morte, sendo levado para fora, colocado aos pés da Santa Bárbara.  Antônio das Mortes indaga à  Santa sobre de onde veio Coirana, pois acreditava ter sido Corisco o último cangaceiro. Ele diz que está cansado de lutar e não quer matar mais ninguém. A Santa orienta:"Vá embora e cruze os caminhos do fogo do mundo pedindo perdão pelos crimes que cometeu". Coirana diz que Antônio das Mortes seria Dragão da Maldade, e  acredita que ele é protegido por colete de ouro que o protege de balas. Em Piranhas, o matador de cangaceiros sugere a Mattos, que peça ao Coronel  abrir o armazém e dê comida ao bando de Coirana, que poderia deixar o cangaço e se estabelecer como agricultor. O Coronel recusa abrir o armazém, e quer liquidar  Antônio das Mortes que vê como um antagonista convocando para isso Mata-Vaca(Vinicius Salvatori) e seus jagunços. Mattos, que pretendia ser prefeito de Piranhas, quer que o matador de cangaceiros deixe a vila e se chegar ao poder através das eleições, pretende resolver o problema de todo mundo. Neste ínterim, o coronel descobre que Mattos é amante de Laura, sua mulher, a quem obriga beijá-lo diante da população. Como numa tragédia grega, Laura pega o punhal de Mata-Vaca e crava no peito do amante.   Com a morte de Coirana é confirmada, Antônio das Mortes quer enterrá-lo na caatinga. Na vila, o Professor arrasta o corpo de Mattos, e é seguido por Laura num vestido roxo, insinuação de luto e tristeza. O padre da vila avisa o Professor que Mata-Vaca vai matar os beatos, e quer que procurem Antônio, mas este, com o corpo de Coirana às costas, atravessa o sertão para sepultamento. Tudo termina com Coronel e Laura, sentados numa marquesa, enquanto o Professor anuncia que sua hora vai chegar. Já Antônio e Mata-Vaca se enfrentam numa luta facões. Depois, há um tiroteio e Laura é mortalmente ferida. Aí, aparece o cego Antão - que não tem nenhuma fala no filme - vestido com as roupas de Oxóssi e enfia a lança no coração do Coronel expondo as metáforas da luta de São Jorge, o Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade. O Professor, anda com o corpo de Laura entre os braços e  beija sua boca. Antônio das Mortes deixa o povoado e caminha lentamente  pela rodovia asfaltada, onde os caminhões passam junto a um posto da Esso, e na tela são projetadas imagens de São Jorge matando o dragão, uma lenda que ganhou corpo na ficção e se projetou nas telas para o mundo conqusitando prêmios e gerando polêmicas sobre os caminhos do cinema novo, que é muito mais e transcende os limites de uma ideia na cabeça e uma câmera nas mãos.(Kleber Torres) Ficha técnica Título : O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro Direção e Roteiro : Glauber Rocha Elenco :Maurício do Vale, Odete Lara, Othon Bastos, Hugo Carvana, Jofre Soares, Lorival Paris, Mário Gusmão, Vinicius Salvatori e Santi Scaldaferri Música : Marlos Nobre, Walter Queiróz e Sérgio Ricardo Cinematografia : Afonso  Beato Montagem : Eduardo Escorel Brasil 1969 95 minutos

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