quinta-feira, 26 de junho de 2025

Uma viagem muito além das estradas do mundo e da vida

A maior ousadia do filme na Estrada baseado no romance On the Road, de Jack Kerouac, é justamente tentar adaptar um dos romances mais emblemáticos da literatura beat e considerado uma obra infilmável pela própria estrutura complexa da obra. O livro que serviu de base para o roteiro de José Rivera foi escrito num estilo de fluxo de consciência e com estrutura fragmentada a partir das ideias dos personagens, o que dificulta a sua transposição para o universo cinematográfico, mesmo assim o diretor Walter Moreira Salles, optou por uma abordagem sensível e respeitosa, buscando preservar o espírito errante, contestatório e existencial da obra original, que foi um marco da geração beat e considerada um ícone da contracultura ao retratar a viagem no sentido mais amplo de dois amigos através dos Estados Unidos em busca da liberdade e de novas experiências existenciais. Em termos de estética, linguagem cinematográfica e visualmente o filme é deslumbrante. A fotografia de Eric Gautier capta com lirismo as paisagens norte-americanas, reforçando o sentimento de deslocamento e busca dos personagens. A trilha sonora de Gustavo Santaolalla, com forte influência do jazz e do blues, ajuda a traduzir o ritmo literário e temporal de Kerouac para o cinema. Apesar da beleza visual e da sua plasticidade, o filme enfrenta dificuldades em capturar a profundidade emocional e o fluxo interno do que passa na cabeça dos personagen deixando a narrativa, por vezes, episódica e aparentemente desconectada, o que pode dificultar o envolvimento do espectador com os personagens. Ele descreve bem a geração beat retratada Sam Riley (Sal Paradise), um jovem escritor que tenta decolar no mundo literário e ao mesmo tempo atua de forma mais contida, refletindo o papel de observador do protagonista, que é em realidade um alter ego de Jack Kerouac. Já Garrett Hedlund (Dean Moriarty) , que na vida real seria Neal Cassidy, considerado uma das figuras centrais da Beat Generation dos anos 1950 , influenciando a contracultura e o movimento psicodélico, tem papel de destaque no filme. Na vida real ele também escreveu O primeiro terço e influenciou obras como Uivo, de Allan Ginsberg, que aparece no filme interpretado por Tom Sturridge, enquanto Kristen Stewart surpreende como Marylou, trazendo sensualidade num triângulo amoroso e vulnerabilidade ao papel. Em essência, o filme aborda temas como liberdade, rebeldia, insatisfação, sexualidade e o vazio existencial da juventude do pós-guerra, sem perspectivas para o amanhã. No entanto, ao condensar o livro, o roteiro deixa de lado muitos momentos de introspecção e crítica social. Na Estrada é uma obra visualmente rica e emocionalmente sincera, mas que não consegue traduzir por completo a intensidade e o caos criativo do livro de Kerouac, marcado pela rebeldia. Ainda assim, é um filme que merece ser visto — não como substituto da obra literária, mas como uma homenagem cinematográfica à inquietação de uma geração que influenciou a contracultura e ao movimento hippie dos anos 60. Enquanto o livro é profundamente introspectivo e baseado em fluxos de consciência. O filme enfrenta o desafio de converter esse processo em imagens na linguagem cinematográfica. A estética polida do filme contrasta com a crueza da literatura de Kerouac. Os bastidores de Na Estrada foram uma verdadeira jornada — quase tão intensa quanto a dos personagens do filme. Walter Salles mergulhou profundamente no universo da geração beat para adaptar o romance de Jack Kerouac com autenticidade e sensibilidade. Antes mesmo das filmagens, Salles refez duas vezes o trajeto original percorrido pelos protagonistas do livro, cruzando os Estados Unidos de costa a costa pela rota 66. Durante essas viagens, ele também gravou um documentário com entrevistas de figuras ligadas à cultura beat, como a poeta Diane di Prima e o escritor Eduardo Bueno. A ideia era captar o espírito da época e entender o que movia aqueles jovens em busca de liberdade e transcendência. Francis Ford Coppola, que detinha os direitos do livro há três décadas, escolheu Salles para dirigir o longa-metragem após assistir Diários de Motocicleta, outro road movie dirigido pelo cineasta brasileiro, que ganhou o Oscar melhor filme internacional em 2025, com Ainda estou aqui . A escolha não foi por acaso: ambos os filmes (Diários e Na Estrada) compartilham o desejo de capturar o movimento, a inquietação e o desejo de transformação. Coppola tentou desenvolver o filme com diferentes roteiristas e diretores, mas esbarrava sempre na estrutura não convencional do romance, cheio de idas e vindas, e na dificuldade de capturar o espírito da geração beat. Em um depoimento a jornalistas, ele chegou a dizer que adaptar o livro foi uma verdadeira dor de cabeça e que chegou pensar em desistir da ideia.(Kleber Torres, com informações complementares do Copilot) Ficha técnica: Título original: On the Road Direção: Walter Salles Roteiro: Jose Rivera Elenco principal: Sam Riley (Sal Paradise), Garrett Hedlund (Dean Moriarty), Kristen Stewart (Marylou), Tom Sturridge (Allan Ginsberg), Bill Lee (William S. Burroughs), Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams e Alice Braga Ano de lançamento: 2012 Duração: 139 minutos Gênero: Drama, Aventura Classificação indicativa: 16 anos Países de origem: Alemanha, Argentina, Brasil, Canadá, EUA, França, México, Países Baixos, Reino Unido Produção: Francis Ford Coppola (executiva), Charles Gillibert, Nathanaël Karmitz, Rebecca Yeldham

domingo, 15 de junho de 2025

Um retrato ímpar da complexa pele cultural e social da Bahia

Considerado um dos mestres do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos dirige o filme Jubiabá, uma produção franco-brasileira, com um olhar atento aos detalhes e com uma sensibilidade que permite extrair, de cada cena, tanto a beleza quanto a crueza de uma realidade marcada pelo preconceito e pela luta por identidade ou mesmo afirmação política. Baseada no romance homônimo de Jorge Amado, a história narra a trajetória de Antônio Balduíno (Charles Baiano), um jovem negro, o qual em função da loucura da avó acaba adotado por um empresário que o expulsa de casa ao descobrir um suposto namoro com sua filha Lindinalva (Franoise Grossard), obrigando-o a esforçar-se para afirmar sua existência num contexto de marginalidade e desigualdade, passando transversal pelo mundo do boxe, do circo, da prostituição e mesmo da militância político-ideológica. A narrativa cinematográfica, que se desenrola de maneira quase poética, cria uma dualidade entre o drama pessoal dos personagens, religiãoea crítica social. Essa tensão é revelada por meio do uso inteligente dos recursos cinematográficos – desde o jogo de luzes até a composição das cenas – que traduz, visualmente, os conflitos internos dos personagens e a riqueza da cultura afro-brasileira, tendo como elo de ligação Jubiabá (Grande Otelo, numa das suas melhores interpretações dramáticas), que atua como personagem fundamental, uma espécie de sábio e conselheiro, um pai de santo e personalidade de grande influência sobre Balduíno, o que o torna uma das figuras centrais do filme. Também a própria ambientação do filme na Bahia, com seus casarios e ruas estreitas não é apenas um pano de fundo, mas sim um personagem vivo, inserido em cada diálogo e em cada enquadramento. A cinematografia capta com maestria a diversidade das paisagens baianas, utilizando planos que alternam entre o intimismo e a amplitude, reforçando a sensação de imersão do espectador na narrativa. A trilha sonora, composta por Gilberto Gil, interage com as imagens, formando um todo que se integra à dramaticidade da obra. O filme reúne artistas consagrados, como Betty Faria, Zezé Motta, Ruth de Souza, Jofre Soares, Mário Gusmão e Grande Otelo interpretando Jubiábá, cujo nome evoca a memória hiostórica, consciência e experiência das pessoas negras ou mestiças em relação à escravidão e à sua cultura. Eles oferecem interpretações que vão além da mera representação de estereótipos, entregando ao público personagens com profundidade e humanidade a partir de suas vivências e contradições. O quer se manifesta ainda na decadência do comendador (Raymond Pellearin), de Lindinalva e de Luigi (Julien Guiomar) numa autenticidade interpretativa que intensifica o impacto emocional do filme, permitindo que o espectador se conecte de forma visceral com os dilemas expostos pelos personagens– desde a busca por pertencimento à constante batalha contra a marginalização e à própria morte. Jubiabá se firma como uma obra cinematográfica fundamental na filmografia de Nelson Pereira dos Santos, que dialoga com a história e a cultura do Brasil, não apenas ao adaptar a narrativa amadiana que literariamente tem o sabor ameno de uma conversa ao pé do ouvido, mas criando um espaço onde o drama pessoal se funde com uma crítica social contundente, estabelecendo um marco na representação das questões raciais e identitárias. Tudo isso sem cair no mero folclorismo e num convite à reflexão sobre os caminhos e desafios de uma sociedade multiracial com todas as suas idiossincrasias para compreensão da nossa própria história. Ficha técnica Título original: Jubiabá Direção e roteiro : Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance homônimo de Jorge Amado Elenco: Grande Otelo, Charles Baiano, Catherine Rouvel, Françoise Goussard, Betty Faria, Zezé Motta, Ruth de Souza, Jofre Soares, Mário Gusmão, Raymond Pellegrin e Julien Guiomar Gênero: Drama Duração: 107 minutos Países de origem: Brasil, França Idioma: Português Música: Gilberto Gil Classificação indicativa: 14 anos Ano de produção: 1987

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Quando a vingança pode terminar com um jeitinho brasileiro

Lançado inicialmente como Favela, Falcon Rising, que seria o marco inicial de uma franquia de ação sobre Codinome Falcon, o filme Falcon Rising, recebeu no Brasil o título de Vingança Fatal (2014) e é estrelado por Michael Jai White, interpretando John 'Falcon' Chapman, um ex-fuzileiro naval americano que enfrenta traumas psicológicos em consequência de suas experiências em combate, e depois de informado sobre um atentado, vai em busca de justiça para sua irmã Cindy (Laila Ali) brutalmente atacada por um grupo mafioso envolvido no tráfico humano e exploração sexual. O filme, rodado na Costa Rica, é dirigido por Ernie Barbarash, a partir de um roteiro de Y.T.Parazi, com uma trama que se desenrola no Rio de Janeiro, no Brasil, do qual aparecem apenas cenas referenciais do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar, mas onde Chapman descobre um submundo de corrupção, tráfico de drogas e de pessoas, com exportação e exploração sexual de menores. Na busca pelos autores do atentado, Chapman conta com o apoio de um ex-colega que trabalha para a CIA no consulado dos Estados Unidos e que o apresenta a policiais brasileiros, os quais poderiam ajudar na investigação em uma favela dominada pelo tráfico, que mantém em lugar do estado omisso serviços de saúde, educação e assistência social para famílias carentes do morro. O filme também revela uma relação e parcerias heterodoxas entre policiais e criminosos como ocorre em muitas cidades brasileiras e em casos já noticiados pela mídia nacional. Michael Jai White entrega uma performance sólida, trazendo intensidade e ação ao papel de Chapman. As cenas de luta marcadas pela violência são bem sincronizadas, destacando as habilidades marciais do protagonista e a narrativa do filme enfoca questões morais e éticas, tendo como complemento a luta pela vingança e a busca por justiça. A inovação da trama, é que além dos traficantes de drogas, emerge a ação da Yakuza, uma organização criminosa transnacional e que neste caso estaria operando uma rede de tráfico e exploração sexual de adolescentes. O filme embora criticado por algumas pessoas ao considerar que ele faz uma representação superficial do Brasil, com elementos que não refletem a realidade local, como sotaques e cenários pouco autênticos, é instigante. A história também segue clichês do gênero, tornando-se previsível e pouco inovador, enquanto os personagens secundários carecem de profundidade, o que enfraquece a narrativa da trama. No final, Chapman lembra a um policial arrependido de ter se envolvido no mundo do crime, que “Deus não tem nada com isso, afinal você fez a sua escolha”, indicando os caminhos multiplos do livre arbítrio e mostrando que a vingança pode ser um prato que nem sempre se come frio. Como o filme tem como cenário o Brasil, o agente americano dá um jeitinho tipicamente brasileiro para a cobertura dos gastos com a recuperação da irmã de Chapman, que sofreu inclusive um traumatismo craniano em consequência do atentado sofrido: os custos seriam cobertos pelo governo americano que tem um sistema de amparo ao dependente dos seus servidores e assim, ele oferece e o herói aceita uma nova missão garantindo a solução de um problema e sinalizando a continuidade da franquia, naturalmente, com mais tiros, golpes de karatê e até de capoeira, além de sangue cenográfico em abundância e muita adrenalina. (Kleber Torres) Ficha técnica: Título Original: Falcon Rising (Vingança Fatal) Direção: Ernie Barbarash Roteiro: Y.T. Parazi Elenco Principal: Michael Jai White, Neal McDonough, Masashi Odate, Laila Ali, Lateef Crowden, Jimmi Navarro e Hazuki Kato Música : Neal Acree Cinematografia : Yaron Levy Gênero: Ação, Aventura Ano de Lançamento: 2014 Duração: 103 minutos País de Origem: Estados Unidos

terça-feira, 29 de abril de 2025

Assassinato de aluguel um negócio imoral que gera três mil mortes por ano

Anualmente ocorrem mais de três mil mortes no mundo provocadas por assassinos de aluguel, mas não há sinais que isto vai parar e pouco se sabe sobre estes profissionais que atuam acima do bem e do mal, sem restrições éticas ou morais. Este é o tema do episódio inicial da primeira temporada de Mercado Ilegal, uma série de programas de jornalismo investigativo apresentada por Mariana Von Zeller, explorando o funcionamento dos mercados ilegais no submundo mundial. Na sua pesquisa a jornalista ouviu sicários de Los Angeles, do México, passando pelo Brasil, Colômbia, Amsterdã e da África do Sul revelando um fenômeno global sem limites de fronteiras geográficas. No caso sulafricano, são estimadas nos últimos sete anos cerca de mil execuções por encomenda, o que torna o problema uma verdadeira epidemia agravada por um circuito de impunidade envolvendo a disputa entre grupos rivais, que lutam pelo domínio do mercado de táxis e vans de aluguel, responsável metade dos assassinatos de mando que ocorrem naquele país. A jornalista ouviu um grupo de três pistoleiros. Um destes profissionais declara sem hesitação que este é um negócio como outro qualquer e em função das encomendas alguém tem que morrer. O grupo de entrevistados incluiu um profissional de nível superior, que assume mais de 30 homicídios, considerando que matar é uma rotina e os preços podem ser contratados a partir de R$ 400,00. Há outro sicário que tenta analisar as raízes sociais do problema associando o crime de mando à pobreza, mas, em compensação não se arrepende do que faz. Em Amsterdã. Mariana Von Zeller vai muito além de uma simples exposição de casos isolados abordando integrantes de uma família de assassinos de aluguel e traficantes. Um deles alega que faz o que tinha de ser feito e sem hesitações ou restrições de caráter ético e moral destaca que esta seria uma questão de sobrevivência num mundo cão, onde outros profissionais estão igualmente disponíveis no mercado. A narrativa é densa e investiga minuciosamente o universo clandestino onde esses indivíduos operam, demonstrando como eles se inserem em uma complexa e interligada economia paralela, na qual a violência é transformada em uma mercadoria. Esse tratamento revela que, apesar do estigma e da condenação social, tais práticas emergem de contextos culturais, políticos e econômicos específicos que facilitam a proliferação desses mercados ilegais . A jornalista adota uma perspectiva que não se limita à apresentação de nomes e fatos, mas que busca compreender a lógica interna dessas redes criminosas. Dessa forma, ela explora os mecanismos organizacionais que regem a atuação dos assassinos de aluguel, destacando que eles operam dentro de um sistema muito mais amplo—onde o contrabando, a extorsão, o roubo e o tráfico se entrelaçam de forma intrincada gerando uma rede de poder. Essa visão sistêmica é essencial para perceber que os assassinos, longe de serem agentes isolados, fazem parte de um fluxo contínuo de transações ilícitas que refletem desequilíbrios socioeconômicos profundos e a fragilidade de certas estruturas repressivas e judiciais, o que revela a omissão dos governantes em relação ao problema. A série que aborda temas variados sobre mercados ilegais nos convida a pensar criticamente sobre a forma como a sociedade é impactada por essas atividades, muitas delas envolvendo somas bilionárias, ampliando a compreensão do funcionamento dos submundos criminosos, mas também evidenciando a necessidade de abordagens integradas—que combinem segurança pública, políticas sociais e práticas de prevenção—para mitigar a influência desses mercados na vida da própria sociedade e das nações. Van Zeller só não incluiu na sua reportagem a história de Júlio Santana, um brasileiro nato, pai de família exemplar e caridoso, responsável de 492 mortes, que foi imortalizado num livro e no filme “O nome da morte”, ele só foi preso por homicídio uma única vez e solto logo em seguida depois de pagar propina aos policiais sendo protegido pelo signo da impunidade(Kleber Torres).

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Quando o preço da verdade pode ser a própria morte

"O Preço da Verdade" (Dark Waters) é um filme que envolve uma grave denúncia sobre contaminação da água provocada pela DuPont no desenvolvimento do teflon, a partir de um composto químico PFOA ou C8 amplamente usado na produção de frigideiras e panelas antiaderentes, o que o torna um manifesto político e ambiental sobre uma questão de saúde pública de dimensão global. Dirigido por Todd Haynes e estrelado por Mark Ruffalo, que interpreta Rob Bilott, um advogado corporativo que enfrenta uma gigante dos setor químico para expor a contaminação ambiental causada pela empresa no desenvolvimento de novos produtos. A direção de Haynes é sensível e eficaz, capturando a tensão e a persistência necessárias para enfrentar um sistema protegido por advogados, cientistas, técnicos e burocratas a serviço de uma empresa que lucrou anualmente US$ 1 bilhão com a venda do C8 ao longo das últimas cinco décadas. A fotografia de Edward Lachman utiliza tons de verde, azul e amarelo para refletir a temática ambiental, a frieza corporativa e o aconchego familiar, respectivamente. Esses elementos visuais criam uma atmosfera de desesperança e poluição, alinhada à narrativa do filme que chega a ser lenta em alguns momentos a partir da contaminação do gado e de pessoas que viviam no entorno de uma fazenda nas margens do rio Ohio, na Virgínia Ocidental, onde estava instalado um depósito de resíduos industriais. O roteiro é cuidadoso ao mostrar a resistência popular através do personagem Wilbur Tennant, interpretado por Bill Camp, que perde o seu rebanho e a prória vida, enquanto Rob Bilott representa a escolha de usar o privilégio para buscar justiça. A história, baseada em fatos reais, é um poderoso lembrete da importância da resiliência e da luta contra a poluição e o escamoteamento de informações ambientais. "O Preço da Verdade" não é apenas um filme; é um chamado à ação e à reflexão sobre nosso papel na preservação do meio ambiente e na busca por justiça, oferecendo diversas lições importantes, especialmente relacionadas à coragem, ética, resiliência e impacto ambiental numa ação judicial morosa e que se arrastou por duas décadas, comprometendo a saúde do próprio Rob Bilott, que ve morrer clientes, enfrenta enormes obstáculos, com a perda amigos, renda pessoal e sofre pressões ao longo de sua jornada, mostrando sua crença na defesa da justiça. O filme revela como a contaminação ambiental pode afetar vidas humanas, animais e ecossistemas inteiros, diante dos olhos indiferentes dos órgãos governamentais, que atuavam de forma lenta na regulamentação de controles e monitoramento de problemas que oferecem riscos para as pessoas e o próprio planeta. Os dados levantados por Rob Billlot permitiram o registro de quase quatro mil casos de pessoas que tiveram a saúde afetada diretamente pelo C8 e vai permitir o acompanhamento de mais de 70 mil pessoas que podem inclusive desenvolver algum tipo de câncer somente na Virgínia Ocidental. Ficha técnica: Título : O preço da verdade (Dark Waters) Direção: Todd Haynes Roteiro: Nathaniel Rich, Mario Correa, Matthew Michael Carnahan Elenco : Mark Ruffalo, Anne Hathaway, Tim Robbins Bill Camp, Victor Garber, Mare Winningham e Bill Pullman Gênero: Drama, Suspense País de origem: Estados Unidos Ano de lançamento: 2019 Duração: 126 minutos

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Um Cavalo de Tróia que pode estar no bolso de cada um

Com duração de 60 minutos, “Sob Vigilância"(Surveilled), exibido pelo HBO, é um documentário impactante e preocupante dirigido por Ronan Farrow, que mergulha profundamente na complexa indústria de espionagem cibernética, denunciando o uso de spyware que permitem acesso a fotos, mensagens, arquivos e diálogos das pessoas monitoradas jogando por terra a ideia da privacidade e cidadania. Farrow é um jornalista conhecido por seu trabalho investigativo premiado internacionalmente e neste documentário nascido a partir de uma reportagem para o New Yorker, com o título “The Survillance State,” expõe as ameaças silenciosas que a espionagem cibernética representa tanto para democracias quanto para indivíduos comuns. O documentário destaca como tecnologias de spyware, como o Pegasus, desenvolvido pelo NSO Group, uma empresa israelense especializada na produção de programas de segurança e espionagem, mas que são usadas por governos autoritários e democráticos para monitorar cidadãos, muitas vezes violando direitos constitucionais, com o uso de GPS para rastreamento dos seus alvos. Farrow apresenta uma narrativa convincente e alarmante através de entrevistas com técnicos e diretores da empresa desenvolvedora do sistema, especialistas em segurança e pessoas monitoradas em vários países, mostrando um painel crítico sobre a proliferação dessas tecnologias e os riscos associados a elas. A direção de Matthew O'Neill e Perri Peltz, que também assinaram o roteiro com Ronan Farrow, complementa a investigação proporcionando uma visão clara e perturbadora da realidade da espionagem moderna, que utiliza programas avançados capazes de transformar o celular num espião no bolso da vítima, que tem todos os seus passos monitorados em tempo real. O documentário é uma chamada urgente à ação, alertando sobre a necessidade de regulamentação e proteção contra abusos tecnológicos e revela como o software foi usado para a prisão de traficantes como El Chapo, no México, além de servir para monitorar jornalistas, políticos e defensores de direitos humanos inclusive em países do continente europeu. Além de transportar o telespectador para o cenário do “velho oeste” digital, sem lei e sem alma, o filme mostra Israel como um dos países que lidera os sistemas de vigilância digital numa escala global, usando os conflitos com o Hamas e o Hezbollah – que teve sua cúpula liquidada com o uso de spywares. Hoje, estes sistemas são usados por países europeus desde 2025 e são usados também pelos governos da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes, Kuwait e de vários países africanos com governos de viés autoritário para o combate a atividades criminosas e ao terrorismo. “Sob Vigilância” também oferece pistas para identificação e enfrentamento dos spywares. O filme, de 2024, cita o caso de pelo menos 11 diplomatas americanos que tiveram seus aparelhos telefônicos ou computadores hackeados, alertando sobretudo para os riscos e impactos destrutivos destas tecnologias digitais. O fato concreto é que o spyware veio para ficar e a indústria do setor, em plena expansão, continua crfescendo, tendo lucros e se sofisticando cada vez mais. Assim, o único caminho para quem não quiser se expor ou se tornar vulnerável é simplesmente ficar sem celular. (Kleber Torres)

domingo, 10 de novembro de 2024

A dupla face de um dilema político, social e existencial

Mesmo sem uma política nacional de segurança pública definida com a integração de ações entre União, Estados e Municípios, o governo brasileiro reagiu com rapidez através do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski ao condenar a venda de armas de fogo logo após um incidente recente em que um atirador num surto psicótico matou o pai, o irmão, dois políciais militares e feriu outras oito pessoas, inclusive familiares, em Nova Hamburgo (RS), além de abater a tiros dois drones da polícia. Ele era esquizofrênico, mas tinha registro de Colecionador, Atirador e Caçador para porte de armas (CAC), segundo informações da Polícia Civil e Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que investigaram o caso. O autor dos disparos, identificado como Edson Fernando Crippa, 45 anos, foi morto dentro de casa onde morava com a família após um tiroteio de nove horas contra policiais, que tentaram – sem sucesso - uma negociação que não se tornou possível. No imóvel, a polícia encontrou várias armas, muitas delas de grosso calibre e mais de 300 munições, o que serviu para reforçar o discurso do governo contra a venda de armas e questionar à instituição do porte de arma para pessoas com registro de CAC no país. A história nada tem a ver com o filme 400 contra 1(2010), de Caco Souza, sobre a origem do Comando Vermelho, em que um faccionado enfrenta as forças de segurança. Neste diapasão, como em Itabuna no ano passado um outro homem num surto psicótico matou a facadas um interno em um albergue de idosos e doentes mentais, seria de bom alvitre abolir também a venda e a fabricação de facas, que também são instrumentos letais e oferecem risco à população mesmo sem necessidade burocrática de registro específico junto aos organismos de segurança. O fato é que o debate sobre a venda de armas e a sua letalidade tem sido um tema recorrente nos Estados Unidos e também no Brasil, onde ocorrerm por ano uma média de 50 mil assassinatos, uma das maiores taxas de homicídio do mundo, representando uma média de 22,8 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. Cabe ainda observar que as facções do crime organizado operam a todo o gás com ações em todo o território nacional, exibindo armas de grosso calibre, sem necessidade de registro ou qualquer outra formalização e realizando atentados cinematográficos como o que resultou na morte do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach, envolvido com uma facção do crime organizado, executado no aeroporto de Guarulhos, na capital paulista, numa área de intensa movimentação de veículos e pessoas. O caso do crime do Rio Grande do Sul e que ganhou repercussão nacional, envolve porém duas faces do problema e que precisam de uma atenção específica de governo. Ninguém discute que a polícia aparentemente enxuga gelo numa guerra desarticulada contra o crime organizado, uma vez que não há uma integração de ações entre o governo federal, estados e municípios, enquanto o crime está cada vez mais organizado, estruturado e usando até mesmo os sofisticados recursos da tecnologia digital para aplicação de golpes virtuais e mesmo monitoramento ou vigilância pelo sistema 24 x 7 das áreas onde atuam e operam as gangs criminosas. Mas, se por um lado o governo se mostrou preocupado com o comércio de armas e munições, cujo controle caberia ao exército, polícia federal e em teoria do Ministério da Justiça, ganhando apoio de alguns setores da socidade civil organizada, por outro lado, nenhuma voz se levantou com relação à situação precária e falta de assistência aos esquizofrênicos no Brasil. Este é um grave problema de ordem política, psicológica e social, que se agudizou com o fechamento dos manicômios no país, os quais, teoricamente, deveriam ser substituídos por serviços de atendimento terapêutico, seja através de centros comunitários, núcleos de convivência e mesmo por unidades de tratamento ambulatorial, que na prática, considerada o critério da verdade, inexistem ou funcionam precariamente na maioria das cidades brasileiras. Coincidentemente, o trágico incidente do Rio Grande do Sul ocorreu quando estava em exibição pelo Prime Video a série Irmãos Esquizofrênicos (Six Schizophrenic Brothers), um documentário de quatro capítulos, sobre uma família norte-americana em que seis dos 12 irmãos, filhos de Don e Mimi Galvin - uma família católica, de origem irlandesa e de classe média alta- , que manifestaram sintomas de esquizofrênia na transição para a idade adulta. A série explora a evolução das relações e das lutas internas dos personagens principais frente à esquizofrenia. O primeiro capítulo mostra a família de 10 meninos e duas meninas, entre os quais Peter, Donald, Brian, Matthew e Jim, que já manifestavam os primeiros sinais de que algo estava errado ainda na juventude a partir do relacionamento entre si e com os irmãos menores. A esquizofrenia de um dos irmãos mais velhos começa a se manifestar com comportamentos incomuns e paranóicos, levando a conflitos e agressões aos irmãos mais jovens, contribuindo para desmoronamento da estrutra familiar. No grupo, Peter, desmembra um cachorro na banheira da casa da família. Donald nos primeiros surtos, quebrava todas as janelas da casa, ele também abusou física e sexualmente de um dos irmãos, mas também foi abusado por um padre que frequentava a casa da família Galvin. Jim, manifestava os seus problemas mentais, sendo cruel com os irmãos mais jovens e Brian, já adulto, num surto psicótico, matou tragicamente à namorada e praticou suicídio logo em seguida. Um dos irmãos não esquizofrênico considera que os problemas fizeram desabar o mundo do que seria uma família de classe média até então teoricamente perfeita e estruturada. O segundo capítulo aprofunda o debate sobre as dificuldades do tratamento e a luta constante contra o estigma da doença, que não era aceita pela família, a qual procurava esconder o comportamento bizarro dos filhos evitando possíveis internações. Os pais optavam por um atendimento ambulatórial e mostrando aos viznhos um núcleo familiar perfeito, cujo patriarca era um oficial graduado da aeronáutica e tinha inclusive doutorado. Mas os problemas se tornam mais intensos e visíveis no decorrer do tempo, resultando em conflitos e situações constrangedoras para a família, que mesmo assim procurava evitar a internação dos filhos, um dos quais o psiquiatra considerou perigoso e recomendou uma internação que nunca chegou a ocorrer. O capítulo também revela o impacto emocional da doença, da medicação que perdia efeito ao longo do tempo e dos tratamentos psiquiátricos ambulatoriais com suporte da Academia da Força Aérea, o que contribui para um desgaste mental e emocional para a desestruturação todo o núcleo familiar, o que se concretizou após as mortes do pai e da mãe dos 12 irmãos. O terceiro capítulo tem como foco o ponto de inflexão na dinâmica familiar, quando os pais percebem a dimensão do problema, que é permanente e requer apoio contínuo. O foco recai sobre a reconstrução das relações familiares, e os irmãos passam a confrontar seus próprios medos e limitações. As terapias em grupo e as conversas nem sempre amigáveis e tensas se tornam uma tentativa de estabelecer um equilíbrio na convivência entre irmãos e lidar com os traumas resultantes de uma tragédia familiar. O último capítulo da série traz uma sensação de esperança para os irmãos doentes e para os próprios pacientes com a enfermidade em todo o mundo. A convivência com a esquizofrenia, embora ainda desafiadora, se torna mais compreendida com a identificação pelos pesquisadorees de um gene ligado à doença em alguns membros da família, após o sequenciamento do genoma dos Galvin. A pesquisa também permite a definição de instrumentos para avaliar como esse gene recessivo pode ser afetado inclusive pelo ambiente externo e como eventos traumáticos podem desencadear a esquizofrenia. Com isso, os irmãos e seus familiares – muitos dos seus descendentes sofrem de ansiedade por medo da esquiszofrenia – temendo uma doença que afeta o pensamento e as sensações, assim, aprendem a desenvolver uma nova rotina, aceitando a condição como parte da vida e mantendo-se alerta para possíveis desvios de comportamento. Peter, por exemplo, se considera “curado” , mas continua tomando regularmente os médicamentos recomendados pelos médicos que o acompanham. No passado, ele foi detido por agressão a dois policiais, mas diz que nunca foi preso, está limpo e hoje trabalha como paramédico. Ele se identifica com São Pedro, um homem santo e que foi pregado na cruz. Para o seu médico, ele é um paciente que está estabilizado. No seu histórico pessoal, ele permaneceu estável por dez anos, até 2002, quando apresentou problemas e em 2004, em função da resistência adquirida aos remédios que utilizava, Peter passou a ser sumbetido a uma terapia eletroconvulsiva (ECT), com uso de eletrochoque e, após cada sessão, diz que fica como um homem novo em folha. Também seu irmão Matthew não se considera doente e vive como ele numa comunidade terapêutica. Hoje, Donald, Peter e Matthew viovem em casas de repouso, com permanente acompanhamento médico. Os pais, antes de morrer, pediram aos demais irmãos que não os abandonasse, mas eles não tem conseguido e a família se dividiu ao longo dos últimos anos. Em março de 2022, um grupo de irmãos se reuniu em Colorado Springs para uma avaliação da situação do núcleo familiar fragmentado e da situação dos irmãos ainda vivos, com esquisofrenis. A série termina com uma mensagem de esperança mostrando que, mesmo nas situações mais difíceis, é possível encontrar alguma paz e equilíbrio, com uma saída viável através da ciência e do avanço na produção de medicamentos ou desenvolvimento da terapias para o atendimento à esquizofrênicos, o que se complementaria com a adoção de políticas públicas adequadas. Já a violência brasileira parece não ter cura, enquanto a própria sabedoria popular na terra do Alienista, de Machado de Assis, nos ensina que de médico e louco cada um de nós tem um pouco e alguns, partecem ter um pouquinho a mais. (Kleber Torres)