quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Zelig e a eterna busca do sentido da vida





          Considerado um filme essencialmente nietzscheano e uma reflexão sobre a condição humana, Zelig (1983), cujo nome em ídiche significa abençoado ou protegido, é um falso documentário dirigido e escrito por Woody Allen, tendo como  cenário as décadas de 1920 e 30, para mostrar a vida Leonard Zelig, um homem desinteressante, mas que tem a capacidade de transformar sua aparência na das pessoas que o cercam ajustando-se ao ambiente e às circunstâncias do seu entorno. O documentário é registrado em preto e branco, enquanto os depoimentos recentes são coloridos e fazem um contraponto com a história ficcional do personagem.
          Em termos metafóricos, Zelig é uma espécie de camaleão humano criado por Woody Allen  para contar a parábola de homem que é a soma de todos, mas ao mesmo tempo nenhum, sofrendo os mesmos dissabores dos atores sociais que viveram em todos os tempos e lugares. O filme assume uma faceta hiperealista  ao usar cenas de documentários a ponto de fazer com que o espectador acredite que o personagem efetivamente existiu, sendo retratado na forma de uma comédia e de brincadeiras criativas, num documentário similar à proposta de O Assaltante Bem Trapalhão (Take the Money and Run), de 1969, do mesmo cineasta.
          O multifacetado Zelig interpretado pelo próprio Woody Allen é visto  inicialmente numa festa, pelo escritor F. Scott Fitzgerald –um personagem real que viveu intensamente entre os anos 20 e 40-, o qual percebe que, ao mesmo tempo em que ele circula entre os convidados  como Leon Zelmann, louvando as elites num sotaque refinado e esnobe. Em seguida, ele se mistura aos criados na cozinha, onde aparece vociferando enfurecidamente contra os "gatos gordos" num forte sotaque proletário e com uma entonação marxista e anárquica.
          Por suas características, ele rapidamente ganha fama em todo o mundo como um camaleão humano, sendo tratado como uma  celebridade pelos jornais e ganhando destaque no noticiário das rádios, bem como aparecendo no mundo da música e do cinema, influenciando a moda e o lançamento de produtos como bonecos e outros objetos de consumo.
          No filme são registrados depoimentos de pessoas de carne o osso como a escritora e critica de arte americana Susan Sontag, que o considera Zelig como um fenômeno do século 20 e o compara como celebridade a Charles Lindbergh, um pioneiro da aviação estadunidense e ficou famoso por ter feito o primeiro voo solitário transatlântico sem escalas em avião, em 1927. Já o critico literário e social Irving Howe, de origem judaica,  falou da estranheza do personagem e o escritor Saul Bellow declarou que Zelig era divertido e mexeu com as pessoas do seu tempo. 
          A produção envolveu um criterioso trabalho de montagem e trucagem que consumiu três anos de trabalho, servindo para reescrever momentos da história entre os anos 20 e a eclosão do nazismo na década de 30 do século passado, mostrando as vezes Zelig como uma figura tímida  e outras como um personagem histriônico e um mero bobo da corte, que também aparece como uma figura circunspecta a depender do momento e da cena. A história é subvertida pelo humor, como alternativa diante de uma realidade por vezes absurda.
          Allen utilizou-se de imagens reais de cinejornais de época, e inseriu a si mesmo e outros atores com o auxílio da técnica do chroma key. Para dar uma aparência autêntica às suas cenas, ele e o diretor de fotografia Gordon Willis utilizaram diversas técnicas, como localizar algumas das câmeras e lentes utilizadas originalmente durante os períodos mostrados no filme, e até mesmo simulando danos aos negativos, como arranhões e rugas, para fazer com que o produto final parecesse realmente antigo. O personagem aparece depois na Florida.
          É nesse contexto que entra em cena a  médica Eudora Fletcher (Mia Farrow), uma psicanalista que quer ajudar Zelig como vítima de um estranho distúrbio não diagnosticado ao ser internado em seu hospital. Através do uso da hipnose, ela  descobre que Zelig não tem problemas fisiológicos, mas sim psicológicos, pois anseia tão fortemente por aprovação das pessoas que se altera fisicamente, na esperança de se adequar e atender assim às expectativas dos  que o cercam melhorando o seu relacionamento em relação a um mundo adverso, hostil e nem sempre racional.
          Usando uma série de técnicas psicanalíticas e drogas experimentais, bem como recorrendo aos recursos da anamnese  e até  a gravação em filme das sessões de terapia, ela consegue de certa forma uma reversão dos sintomas, não sem gerar  algumas complicações colaterais para o paciente. Mesmo assim, colhe bons resultados e ela eleva a auto-estima de Zelig, cujo pai ao morrer ensinou a vida é um pesadelo de sofrimento sem sentido, mas não soluciona o seu drama pessoal.
          O filme embute uma sátira aos diagnósticos  dos analistas  como estratégia para se autoafirmarem com o seu jargão perante os pacientes e ao público leigo, mas revela ao mesmo tempo os problemas da falta de compreensão e de amor, bem como a necessidade de aceitação das pessoas para o convívio social, o que ocorre na família, no trabalho, na escola, o que nos remete e Friedrich Nietzsche  para quem nós nos sentimos bem em meio à natureza porque ela não nos julga.
          Nesse ínterim, sua Irmã o tira do hospital e o leva para casa, o que culmina numa tragédia familiar quando ela se envolve com um toureiro e acaba assassinada num complicado triangulo amoroso, enquanto a médica insiste e recorre até à justiça para tentar continuar o tratamento interrompido do paciente. Zelig, cujo segredo do sucesso é a não existência e vive como uma não pessoa,  continua sua escalada no hall da fama e é apontado como um fenômeno do século XX, mudando sempre de aparência, sendo tema de um filme sobre a sua vida, rendendo dividendos ao consumo com a comercialização de bonecos, canetas, games, músicas e até com a propagação da dança do camaleão uma variante do charleston.
          Depois da morte da irmã, Zelig, que fora esquecido pela mídia saturada de distração, reaparece num incidente no Vaticano e retoma o tratamento, para identificar se ele é psicótico ou neurótico. Ao assumir o papel de médico na retomada do tratamento, ele fala de paranóia delirante e Eudora Fletcher desenvolve uma estratégia com uma espécie de choque de realidade, quando ele acaba admitindo o obvio: “não sou ninguém, não sou nada”.
          Zelig fala do seu drama existencial e lembra de ter ido na juventude  a uma sinagoga para saber do rabino o sentido da vida, quando é informado em hebraico língua que não compreendia. O rabino se propõe assim a ensinar a língua dos seus antepassados mediante uma módica contribuição de 600 dólares. Na estratégia de resgatar a personalidade perdida do paciente, ela consegue que ele comece a falar verdades que nem pensaria,  dizendo, por exemplo, que odeia a vida no campo, que a médica é uma péssima cozinheira, se define como democrata e acaba sendo avaliado por uma junta médica que atesta a sua cura depois de um debate sobre as condições do tempo.
          Com a repercussão do caso Eudora, que se apaixona por Zelig, ganha fama e se torna também objeto de homenagens de cientistas, sendo recebida na mansão William Randolph Hearst, frequentada por artistas de cinema, músicos e cantores. Devido à cobertura feita pela mídia sobre o caso, tanto o paciente quanto a doutora tornam-se parte da cultura popular de seu tempo e ele admite que era um camaleão e não mais o é.
          A fama, contudo, só trouxe problemas ao casal e  a mesma sociedade que fez de Zelig um herói, acaba por destruí-lo, quando ele admite que mudou. Ele é acusado de bigamia por uma mulher e identificado como o pai de gêmeos abandonados por uma outra,  também é responsabilizado erros médicos quando se passava por um profissional de saúde e por imperícia até como pintor de parede, até a historia da sua vida que havia vendido para um estúdio cinematográfico acaba jogada na lata do lixo e a empresa cobra o seu dinheiro de volta.
          Mesmo assumindo os erros e pedindo desculpas,  Zelig é chamado de criminoso e é  considerado uma má influência moral, mas continua recebendo o apoio da mulher e médica. Como conseqüência dos problemas enfrentados, ele tem uma recaída e se transforma em grego num restaurante de comidas típicas da Grécia, e depois desaparece evanescendo nas brumas do tempo.
          Eudora Fletcher inicia então uma busca incansável por ele e pede ajuda até da polícia na tentativa de achar Zelig. Ele foi visto como mariachi, no México, o que não foi confirmado e acaba sendo identificado num jornal cinematográfico onde é visto ao lado de Hitler e simpatizantes nazistas na Alemanha. A médica viaja para a Europa e o encontra num grande comício, onde Zelig ao vê-la atrapalha um discurso do líder máximo do nazismo e acaba perseguido pela SS, na fuga ele rouba um avião e bate o recorde na travessia do Atlântico, voando de cabeça para baixo e voltando ao noticiário.
          Zelig é recebido com festa nos Estados Unidos e a fuga audaciosa lhe rende aplausos e elogios do governo americano. O fato interessante é que sua adaptabilidade  às coisas, a sua doença, acabou sendo a sua salvação e como tudo tem um final feliz, ele e a médica se casam, vivendo felizes para sempre. Zelig lamenta no final da vida, que o único mal de morrer é que não havia terminado de ler Moby Dick, de Herman Melville  (Kleber Torres)

Ficha técnica
Direção - Woody Allen     
Roteiro - Woody Allen      
Elenco -  Woody Allen, Mia Farrow, Patrick Horgan (narrator), Susan Sontag, Saul Bellow e Irving Wowe
Música  - Dick Hyman      
Fotografia - Gordon Willis
Estados Unidos

1983

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