terça-feira, 28 de novembro de 2017

Johnny ou a inutilidade da guerra e da vida meramente vegetativa


O filme Johnny Got His Gun (Johnny Vai à Guerra) não é apenas um libelo em favor do pacifismo, mas também coloca em debate uma questão controversa, a eutanásia, ao mostrar a inutilidade da vida vegetativa, que prolonga o drama do paciente, o qual sequer tem direito de opinar sobre um bem fundamental: uma vida com qualidade e com os seus prazeres cotidianos. O filme, que inspirou com usas imagens videoclipe “One”, do Mettalica, também analisa com um viés critico a função da ciência e dos avanços tecnológicos, bem como a humanização do atendimento aos pacientes terminais. Escrito e dirigido por Dalton Trumbo e baseado em seu livro homônimo, o roteiro teve ainda a participação do genial Luis Buñuel para nos contar a dramática história do soldado Johnny (Tymothy Bottoms), gravemente ferido na Primeira Guerra Mundial depois da explosão de um morteiro, quando perde os braços, as pernas e a língua, além de sofrer graves ferimentos no rosto que comprometeram a sua visão e audição. Assim, mantido num estado vegetativo e ocupando um leito especial que cobre todo o seu corpo, além de uma proteção na face, Johnny não enxerga, não fala, não ouve e não consegue nem mesmo sentir cheiros ou odores do ambiente que o cerca. Ele apenas evidencia nas suas reflexões sobre o que sente quanto tocam o seu corpo ou quando reflete sobre o seu estado vegetativo. Os médicos que o mantém vivo acreditam que em função das lesões sofridas, a vítima nem mesmo consegue sentir dor, o que o torna uma cobaia ideal para experimentos sobre a resistência humana às consequências adversas da guerra. Em sua essência o filme nos remete à discussão não piegas de temas importantes: como a questão da humanização do atendimento pelos profissionais de saúde aos pacientes, o limite para a realização de pesquisas científicas e as consequências devastadoras da guerra, que tem custos sociais e humanos elevados, mas se revela inútil pelo seu impacto destrutivo dos bens materiais e por semear a morte de forma indistinta para jovens e velhos, além de provocar mutilações irreversiveis. A eutanásia é uma questão à parte porque de nada adianta uma vida vegetativa, além do mais quando o paciente consciente clama pela própria morte e não tem nem familiares e nem amigos. O problema maior é que mesmo sem identificação e sem parentes que o reconheçam,Johnny é mantido vivo apenas para subsidiar estudos sobre a privação dos sentidos e dos movimentos corporais. O fato é que mesmo em condições adversas e sem contatos afetivos com o mundo exterior que lhe é adverso, o soldado vai tomando consciência das suas perdas dia a dia, seja quando fazem a retirada dos pontos dos membros amputados ou quando percebe que não tem movimentos corporais e sente um medo profundo quando nota a presença de uma ratazana caminhando na sua cama e ameaçando o seu corpo inerte. Neste ínterim e em meio ao sofrimento e à angustia, ele lembra da namorada Kareem (Diane Varsi), da despedida romântica facilitada pelo sogro que lhe proporcionou uma noite de amor ou do jogo de cartas com outros soldados antes dos combates. Misturando sonhos com lembranças confusas do passado, Johnny se conscientiza de que não apenas ele, mas todos os seres vivos estão condenados a uma morte inexorável. O problema é que ele não sabe nem mesmo se está acordado ou dormindo envolvido num clima de torpor. O personagem também questiona qual o médico o deixaria naquele estado e ainda vivo, mas os pesquisadores que o mantém em vida vegetativa falam com euforia dos avanços da ciência e da possibilidade de reenvio para as frente de combate dos soldados feridos e até amputados num prazo de três semanas, ou seja, apenas após o prazo de cicatrização dos ferimentos. O soldado inerte relembra também da infância, das pescarias e do pai, a quem pede ajuda inutilmente nos seus pensamentos e que por estar morto, já não o escuta e nem atende. Lembra ainda das conversas com o pai sobre a democracia como qualquer tipo de governo em que os jovens se matam nas frentes de combate. O pai também lhe ensina de forma nietzscheana, que todo homem deve enfrentar a morte sozinho. Em que pese a assepsia do hospital e os cuidados que recebe, inclusive de uma jovem enfermeira que acaricia às vezes o seu peito, as coisas parecem mudar no filme quando uma nova enfermeira chefe inicia um atendimento mais humanizado a Johnny, pois o mesmo havia sido escondido em um quarto isolado, distante das pessoas e dos olhares piedosos. Assim enfermagem passa a oferecer um pouco de dignidade ao paciente, dando maior atenção a ele, tentando tirar Johnny do completo isolamento e o jovem de 20 anos sente a mudança e se anima no dia em que abrem a janela do quarto onde recebe com prazer do calor da luz do sol aquecendo sua cama, mas um dos médicos recomenda que fechem as cortinas para que ninguém o veja. Ele compara a sua situação como um circo dos horrores e pensa até na sua família o utilizando como uma aberração circense. Relembra da namorada Kareen e de uma relação com uma prostituta distante no tempo e no espaço. Também lembra do pai que o aconselha a usar a cabeça e ao verificar que possui os movimentos da cabeça ativos, ele tentar se comunicar com as pessoas através de Código Morse pedindo socorro ao transmitir um SOS. De início, sua tentativa é confundida pelos médicos como simples espasmos musculares ou uma convulsão, quando lhe aplicam pesados tranquilizantes. Só depois de algum tempo um soldado que estava no hospital e que integrou uma junta médica interpretou a mensagem telegráfica e entrou em contato com o paciente batendo telegraficamente na sua testa, descobrindo que o soldado mutilado está consciente e ainda pode se comunicar com a cabeça. Johnny pede que o exibam para as pessoas e para o mundo "numa gaiola de vidro e mostrem ao mundo o horror da guerra, ou matem-me". O pedido de morte se repete sempre quando percebe que tem visitas. Uma enfermeira caridosa e penalizada pede perdão a Deus e tenta matá-lo por sufocamento, mas acaba impedida por um médico militar. O filme termina com o personagem mantido na sua cama, lembrando que nas guerras mundiais morreram 80 milhões de pessoas e outros 150 milhões acabaram feridas, números que revelam a prevalência de uma epidemia de violência e de insanidade. (KLeber Torres) FIcha técnica Titulo: Johnny Got His Gun (Johnny vai à Guerra) Direção: Dalton Trumbo Roteiro: Dalton Trumbo e Luis Buñuel Elenco: Tymothy Bottoms, Jason Robbards, Donald Sutherland, Diane Varsi, Kathy Fields Gênero : Drama e Guerra Indicações: Prêmio Globo de Ouro: Melhor Ator Revelação do Ano Estados Unidos 1971 Preto e Branco 111 minutos

sábado, 25 de novembro de 2017

O desafio da viagem no tempo e a ficção científica


O History Channel exibiu recentemente o documentário “A Verdadeira História da Ficção Cientifica”, que em realidade é a história da imaginação, até porque uma das ideias mais instigantes é a da viagem no tempo, um processo em que as pessoas transitam do presente para o futuro ou para o passado remoto, um tema que atrai grandes escritores e cineastas famosos, encantando leitores e telespectadores. A questão não é nova e em 1895, H.G.Wells publicou o antológico “Máquina do Tempo” (The Time Machine) em que um inventor criativo constrói um equipamento capaz de transportá-lo no tempo levando-o em direção ao futuro. Vale lembrar que este livro foi escrito na época vitoriana, um período de mudanças marcado por um grande desenvolvimento econômico e industrial da Inglaterra, além das conquistas coloniais de novas terras e novos horizontes. Na Era Vitoriana, a Inglaterra tornou-se o país mais rico e poderoso do mundo. Além do mais, Wells explorou de forma criativa uma série de temas que foram mais tarde aprofundados por outros escritores de ficção científica, e que ganharam repercussão junto à critica e ao público em livros como A Máquina do Tempo, O Homem Invisível e A Guerra dos Mundos, que ganharam adaptações cinematográficas. Outra obra importante e que chegou as telas quase um século depois foi o filme de “Volta ao Futuro”, dirigido por Robert Zemeckis, escrito por ele em quatro mãos com Bob Gale e estrelado por Michael J. Fox, Christopher Lloyd, Lea Thompson, Crispin Glover e Thomas F. Wilson. O filme conta a história de Marty McFly (Michael J. Fox), um adolescente que volta no tempo até 1955 com a ajuda de um cientista Dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd), com uma excelente interpretação. Nesta viagem no tempo em um veículo adaptado e movido pela energia de um raio, ele conhece seus futuros pais no colégio e acidentalmente faz sua futura mãe ficar interessada sentimentalmente por ele. Para evitar o que seria um paradoxo e um desastre, Marty deve consertar o que seria um erro na história fazendo com que seus pais se apaixonem e, para isso contaria com a ajuda do amigo cientista para encontrar um modo de voltar para 1985. Em sua essência, a ficção científica reflete um universo de criatividade de escritores e roteiristas, que se inspiram pensando coisas novas e buscando novas ideias, o que deu uma nova dimensão à questão da viagem no tempo. A questão também envolve paradoxos como o de uma pessoa alterando o passado, o que implicaria em mudanças no futuro – um exemplo seria você encontrar os seus avós no passado e os matando, mesmo circunstancialmente, inviabilizaria o seu nascimento no futuro. A história da ficção cientifica também tem como referência um clássico do cinema Metropolis, de 1927, um longa metragem dirigido por Fritz Lang, que nos mostra uma sociedade distópica, bem como a contradição entre ricos e os pobres, numa referencia à luta de classes, os quais vivem à margem num mundo subterrâneo, que seria uma metáfora das grandes distorções entre os que têm dinheiro e os desvalidos. O roteiro foi baseado em romance de Thea von Harbou e escrito por ela, em parceria com Lang, que dirigiu o filme mais caro e considerado um marco do expressionismo, sendo uma referência para o nosso tempo. Outro destaque no documentário sobre ficção cientifica é o conto “Um Som de Trovão” (A Sound of Thunder), de Ray Bradbury, publicado originalmente na revista Collier's em 1952 e que permanece em primeiro lugar entre as dez histórias de FC mais reimpressas em todos os tempos, contando a história de uma viagem no tempo para caçar dinossauros. Assim, para evitar aquilo que seria um paradoxo temporal, os personagens agem com cuidado para deixar o curso dos acontecimentos intacto, visto que mesmo uma alteração mínima poderia gerar mudanças no futuro. Desta forma os viajantes só poderiam abater animais que iriam morrer em breve, que estavam em fase de extinção, e não poderiam sair de uma trilha demarcada previamente, que flutua acima do solo. O problema é que numa destas incursões, um dos caçadores pisa casualmente em uma borboleta, e, ao voltar ao futuro, redescobre o mundo completamente mudado, imerso no mais absoluto caos. A questão tem como parâmetro a da teoria do caos, em que uma borboleta bate asas na China e pode gerar uma tempestade em outro continente. O documentartio incursiona ainda em “Uma aventura fantástica” de Bill e Ted, uma comédia americana com Keanu Reeves e Alex Winter, em 1989 e Doctor Who, uma série de ficção científica britânica, produzida pela BBC desde 1963, mostrando as aventuras do Doutor, que viaja no tempo para salvar as civilizações, ajudar as pessoas comuns e corrigir erros. As referências incluem ainda TX 1118, dirigido por George Lucas, que leva numa viagem ao futuro, a um mundo distópico em que as pessoas vivem em grandes cidades subterrâneas e onde as emoções são controladas por meio de medicação obrigatória. Também são referencias históricas do rico universo de ficção cientifica o Logans Run (Fuga do Século XXIII), um filme americano de ficção e que deu origem a uma série de televisão em 1977. Mas, o grande marco da Ficção Cientifica é, sem dúvida, o Blade Runner, de Ridley Scott, com Rutger Hauer e Harrosin Ford, que tem como cenário uma decadente e futurista Los Angeles em novembro de 2019, afetada pela poluição, pelo consumismo exacerbado e a consequente busca de novas formas de colonização, um processo para o qual as pessoas são convidadas a se aventurarem, em viagens interplanetárias, em face do colapso da civilização, numa falência em termos materiais e morais. O diretor Ridley Scott foi visionário na medida em que a globalização tão amplamente acentuada nas últimas décadas, encontra no filme, um final catastrófico, melancólico e deprimente, com animais extintos clonados e replicados a exemplo dos replicantes humanos, como sói acontecer com uma profusão de culturas, etnias, credos e costumes.Tudo ocorre tal qual podemos vislumbrar o preâmbulo nas sociedades hodiernas, onde metade das coisas que fazemos não funcionam, não fazem sentido e geram uma crise existencial mostrando que a vida é confusão e o caos inexorável.. Blade Runner nos revala um padrão de visão do futuro em termos de linguagem, e o próprio Harrison Ford ficou inteiramente confuso com as frase e xingamentos de um androide, numa mistura de línguas ocidentais e orientais, que se fundem e se completam, como ocorre hoje num mundo cada vez mais globalizado. BR explora a própria crise da América, com uma sociedade cada vez mais urbana e desintegrada. O filme ocorre no momento em que o sonho americano começava a desmoronar. Mas os filmes de ficção científica saem dos limites estritos daiagem no tempo e da caça de andróides, para emergir na invasão da privacidade, com telefones e câmeras monitorando a vida da pessoas, ações que também são acompanhadas por drones, neste caso uma referência é 1984, de George Orwell. No filme “12 Macacos” a humanidade é ameaçada por um vírus letal e cabe a Bruce Wills evitar a catástrofe final. A ficção cientifica também nos remete a uma situação esdrúxula, ou seja, ao homem assistir a sua própria morte. Também nos deixa cara a cara com “Looper” (Assassinos do Futuro), de 2012), que nos fala do salto quântico na viagem no tempo. Assim, cabe questionar como este tipo de viagem em outra dimensão afeta as pessoas. O problema é saber qual a história que queremos, os valores e afinal num universo real ou de ficção, sabermos o que realmente somos ou para onde vamos. (Kleber Torres)

terça-feira, 7 de novembro de 2017

A simplicidade e repetição no humor chapliniano


A Revista de Chaplin (The Chaplin Revue) reúne três histórias diferentes dos anos 20, período do cinema mudo, que nos revelam a essência da comédia e das histórias nem sempre roteirizadas de Charles Chaplin, que antecedeu Glauber Rocha no sentido de utilizar uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. O humor chapliniano tem como base poucos personagens, simplicidade na ação e a repetição dos “gags”, ou seja, efeitos cômicos que, numa representação, resultam do que o ator faz ou diz, jogando com o elemento surpresa ou o fato insólito, que vai além das expectativas da razão e atinge muitas vezes os limites do surreal. Na primeira história, Vida de Cachorro (A Dog’s Life) um vagabundo (Charles Chaplin), que não tem nem sequer onde dormir e vive vagando sem emprego pelas ruas sem conseguir nada, sobrevive de pequenos furtos de alimentos e frequentando ambientes nem sempre recomendáveis como o Lanterna Verde, um ambiente cheio de malandros e golpistas, acompanhados de garotas de programa. Certo dia, vendo uma briga de cachorros na rua disputando alimentos, ele acaba adotando um vira-lata a quem dá o nome de Scraps. Neste ínterim, o cachorro de Chaplin acha um dinheiro roubado por ladrões e ele se envolve numa disputa da qual sai vitorioso. Depois, se estabelece no campo, com a mulher e o cachorro, aliás uma cadela com as suas crias. No segundo filme, o vagabundo (Charles Chaplin) é um soldado desajeitado, que faz tudo ao contrário, em treinamento para guerra. O filme utiliza imagens reais das trincheiras ma Primeira Guerra Mundial com seus horrores de mortes sem sentido, disputas áreas limitadas de terra minada e uso de gases químicos, altamente tóxicos mas de efeitos letais para milhares de vitimas. O fato é que Chaplin apesar de ser um patinho feio num exército de pessoas normais, acaba virando herói, rendendo primeiro um pelotão de alemães; depois eliminando inimigos disfarçado de árvore e por fim, prende o Kaiser, numa ação também fora de qualquer lógica e sentido. O problema é que tudo não passa de um sonho e ele acorda no acampamento em que está sendo treinado para a guerra, ou seja, a luta da vida contra a morte, que sempre acaba vencendo no fim. No terceiro filme, um foragido (Charles Chaplin) se disfarça de padre para fugir do presídio, mas acaba sendo confundido com um pastor que ia fazer uma pregação pequena cidade de Devil's Gulch. Depois de se meter em trapalhadas durante a pregação, fazendo uma paródia sobre David e Golias que agrada a um moleque do público e lhe rende aplausos, ele depois tem como rival um ex-colega de cela, um ladrão incorrigível que tentava roubar os seus acólitos. Chaplin também enfrenta um menino mal educado, que não respeita os pais e nem a ele, e, além de chutar o menino por duas vezes – o que nos dias de hoje seria politicamente incorreto para os puristas -, também se envolve na confecção de um bolo, colocando glacê sobre o chapéu do pai do menino sapeca, mostrando que o riso escapa das fórmulas prontas e acabadas , evidenciando os caminhos para compreensão de Chaplin, que encarou os problemas do início do século: o avanço da exploração do petróleo, do cinema e da aviação, três fenômenos globalizados e que tiveram impacto na vida de todos nós, mas também contribuíram para achados cômicos e inteligentes, porque o humor é um indicador de inteligência e de visão critica da realidade. (KLeber Torres) Ficha Técnica: Título original: A Revista do Chaplin (:The Chaplin Revue) Data de lançamento 1959 Direção: Charles Chaplin Elenco: Charles Chaplin, Henry Bergman, Edna Purviance Gênero: Comédia Nacionalidade Reino Unido/ EUA Cor Preto & Branco 128 minutos

sábado, 4 de novembro de 2017

Resiliência e amor na conturbada trajetória do James Dean do jazz


A conturbada história do James Dean do jazz e do príncipe do “cool” é retratada no filme Chat Baker – A Lenda do Jazz (Born To Be Blue), que teve a sua carreira e vida pessoal atropelada pelo uso e abuso de heroína. Estrelado por Ethan Hawke, com uma interpretação primorosa, o drama acompanha a trajetória e resiliência do cantor e trompetista a partir da etapa mais conturbada de sua carreira, nos anos 60. O filme começa em Lucca, Itália, 1966 para onde ele se transferiu em definitivo para a Europa onde viveu até a sua morte em Amsterdã, em 1988. A cena começa com um trompete dourado no chão de onde sai uma aranha gigantesca e Chat Baker drogado, dorme no piso de uma prisão, onde é acordado por um guarda anunciando a chegada de um cineasta hollywoodiano interessado em filmar sobre a sua vida. A sequência colorida sofre um corte e aparece uma outra de 1954, na Birdland, em New York City, onde Baker já era considerado um dos melhores tropetistas e vocais, aparecendo como um ícone da escola de jazz da Costa Oeste, sendo festejado e aplaudido por fãs ao se apresentar ao lado de celebridades como Miles Daves e Dizzy Gillespie. No ápice de sua carreira, Chat Baker, que era branco e por isso um estranho no ninho jazzístico, chegou a ter o seu próprio quarteto e era cobiçado pela indústria fonográfica e cinematográfica por outros dois importantes atributos: sua juventude e beleza. Tudo muda quando Chet Baker mergulhou no mundo das drogas ao se viciar em heroína. No filme, uma sequência interessante envolve sexo e heroína, tendo como o jazz com fundo musical. Numa cena, Baker diz ironicamente que odeia agulhas e pede a amante Jane (Carmen Ejogo) que aplique a droga, numa sequência que se repete em cores durante a filmagem em Los Angeles, nos idos de 1966, de uma película sobre o músico que interpreta a si mesmo e sem ser ator, também fez incursões no universo do cinema. O fato é que em função do abuso de drogas e bebida, as suas turnês musicais diminuíram e se tornaram esparsas, na medida em que ele entrava e saía da prisão após ser condenado por envolvimento em drogas. Numa cena subsequente, um amigo lembra ao músico sobre a sua vida louca e desregrada, destacando que não abandonou a mulher e o filho para se tornar no maior viciado do mundo. Numa outra sequência Baker faz referência às suas proezas sexuais mesmo chapado e admite que tem os seus vícios, o que a mulher Carmen Ejogo interpretando primeiro a amante Jane e depois, a companheira do músico nos momentos de dificuldades, Elaine. Ela concorreu com isso ao prêmio de melhor atriz no prêmio do cinema canadense, e lembrou ao músico: “sei que você é um problema”. As coisas se agravam ainda mais, quando após show na cidade em 1968, Chat Baker foi barbaramente espancado por traficantes em função de dividas ganhando lesões graves do pescoço, fraturas na face e perdendo os dentes da frente, o que comprometeu a sua embocadura selando o que seria a sua morte para o jazz. Nesta fase os produtores, amigos e músicos se afastam do músico que recomeça tudo a partir do zero. Em que pese os problemas, o músico tem consciência de que era um dos maiores trompetistas da sua geração e mais que isso, sabia da sua capacidade de improvisação, a mais importante carcterística de um artista no mundo do jazz. Ele lembra do seu encontro com Charlie Parker, o Bird, que fez uma seleção de músicos para acompanhá-lo numa banda e fechou o teste quando encontrou Baker. Na sua recuperação, o trompetista fez uso de metadona, um narcótico do grupo dos opióides utilizado principalmente no tratamento dos toxicodependentes de heroína e outros opiáceos, mas que também tinha sérios efeitos colaterais. Neste interin ele volta para a zona rural onde vivem os seus pais, tocando em bares sem expressão no interior do país e voltando a trabalhar num posto de gasolina, emprego necessário para o cumprimento das exigências da prisão condicional. Aos policiais que monitoram sua reabilitação, ele os acusa de terem sido responsáveis pela morte de Billie Holliday, uma musa do jazz, que morreu também envolvida em drogas numa trajetória descendente que a levou ao ocaso. Born to Be Blue nos revela duas facetas importantes para recuperação do musico: a sua resiliência, ou seja, uma capacidade para superar as perdas e danos da vida, além do amor manifesto de Elaine, com quem divide uma Kombi, que serve de moradia e veículo de transporte. A partir daí, começa uma nova fase para a reinvenção da sua carreira, com Chet Baker se adaptando a uma nova embocadura, superando as dores e tentando se reerguer no mundo da música até voltar ao Birdworld, onde volta a conquistar aplausos do público, da crítica e dos seus pares. Baker voltou ao Birdworld e à heroína, perdendo em definitivo a companhia de Elaine, que tenta uma carreira solo no cinema. Ele confessa que conseguia entrar em cada nota e mandou um recado para Miles Dives, um dos seus antagonistas: “tem um jazista branco da Costa Oeste que vai comer vocês vivos,” mas a tragédia humana e pessoal do artista só terminou em 1988, com a sua morte, mas com sua voz e trompete imortalizados em bolachões, CDs e imagens do cinema, mas que nos chegam também através do YouTube. O filme resgata alguns clássicos de Chat Baker como My Funny Valentine, mas faltou Take Five, de Paul Desmond, o que fecharia tudo com chave de ouro e nos remeteria ainda mais à competência de uma voz inconfundível e de um trompete que hoje anima junto com trombetas a banda dos céus. (Kleber Torres) Ficha Técnica Título: Chat Baker – A Lenda do Jazz (Born To Be Blue) Direção e roteiro: Robert Budreau Elenco : Ethan Hawke, Carmen Ejogo, Callum Kaith, Stephen McHatie, Kevin Hanchard Música composta por: David Braid, Todor Kobakov, Steve London 2015 (EUA)