sábado, 30 de março de 2019

Torquato Neto: uma rota para todas as horas antes do fim







A morte aparece como tema transversal ao longo do documentário ‘Torquato Neto - Em todas as horas do fim’, dirigido e roteirizado por Eduardo Ades e Marcus Fernando, sobre  a vida trágica do poeta dos ‘Últimos Dias de Paupéria’, “Torquatália – do lado de dentro” e “Torquatália – geleia geral”, publicados postumamente, que também atuou no cinema e na música, emplacando cerca de 40  sucessos como 'Soy Loco Por Ti América', ’Geleia Geral”,  Prá dizer adeus’ e ‘Marginália II” , o que o torna um dos expoentes do Tropicalismo e no jornalismo, assinando a coluna Geleia Geral, na Última Hora. Como ativista cultural, o artista multimídia piauiense também foi um ativo participante revolução contracultural que mudou os rumos da cultura brasileira nos anos 1960 e 1970.
O fato é que além de ser um dos pensadores e letristas mais ativos da Tropicália, Torquato Neto  (1944-1972), interpretado pelo ator Jesuíta Barbosa, foi parceiro de primeira hora de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé e Jards Macalé, que aparecem no filme dando depoimentos sobre a sua obra e a trágica vida do artista, que culminou no seu suicídio, aos 28 anos.
Ele viveu pouco, mas teve uma trajetória intensa, altamente produtiva, inclusive no campo político como crítico do regime militar, que suspeitava de ter os telefones grampeados e deixando uma obra póstuma reunida em três volumes. O filme inclui cenas gravadas de músicas para televisão e filmes com a participação de Torquato Neto, usados  como recurso complementares, que se juntaram a imagens e depoimentos inclusive do seu único filho Thiago. Ele também marcou presença na contracultura brasileira atuando em conjunto com ativistas como Waly Salomão, Ivan Cardoso e Hélio Oiticica, mas resolvendo dar fim à sua vida   ao suicidar-se no dia seguinte ao seu 28º aniversário em 10 de novembro de 1972.
O filme vale pelo resgate da história da vida de um dos personagens mais influentes da contracultura brasileira, um dos pais da Tropicália, cuja morte também previu e ao mesmo recompõe um pedaço perdido e fragmentário da nossa própria história bem como da MPB, o que todos agradecem.  (Kleber Torres)

sábado, 16 de março de 2019

Um Rio muito além do medo e acima do bem ou do mal



Ao documentário Rio do Medo, exibido pela Globonews,  caberia outro título, porque ele não se refere apenas ao Rio de Janeiro, reconhecidamente um dos estados mais violentos do país, com o registro de uma média de 6.731 mortes em 2017, o que representa uma mortalidade de 40 pessoas para cada 100 mil habitantes. O filme tem como foco a Polícia Militar, considerada uma das forças que mais mata e a que mais morre no país, com um efetivo de 47 mil homens, um terço deste total afastado das ruas para tratamento de saúde, mas registrando  no mesmo período  134 mortes, o que representa uma média de 285 mortes violentas para cada 100 mil  pessoas, ou seja, uma letalidade sete vezes maior que a do conjunto da população, indicando que ser policial no Rio é uma profissão de risco, pois cada policial tem sete vezes mais chances de morrer do que o cidadão comum.
Dirigido e roteirizado por Ernesto Rodrigues, o filme reúne um conjunto de entrevistas com policiais da reserva e da ativa, inclusive oficiais de alta patente. A ideia partiu da notícia de um aniversário de uma criança que teve como motivo da festa infantil o Bope (Batalhão de Opreações Especiais), uma tropa de elite retratada no cinema em dois filmes (Tropa de Elite 1 e 2), que hoje concentra 1,08% do efetivo da PM e é considerada preparada para o combate com uso de armas pesadas.
Entre os depoimentos  estão os  coronéis da reserva e ex-comandantes gerais da PM, Ubiratan Angelo, que veio de uma família humilde da periferia, como dançarino de funk e com cabelo black power, mas chegou ao posto mais alto da corporação e Ibis Pereira, além do coronel Vinicius Cavalieri, fundador do Bope e que por segurança orientava os filhos para não dizerem que o pai era policial militar, mas professor de educação física. Ele também tinha um pessoal lema em operação de confronto: “se uma mãe tem que chorar, que não seja a minha”.
O elenco inclui ainda médicos e psicólogos da PM ,  além de policiais da reserva como Paulo Storani, hoje consultor na área de segurança,  que terminou um namoro porque entrou na PM e a moça era contra. A relação inclui os majores Gian Carlo Sanches, Bianca Neves e Rosana Cardoso, além de Ana Fucs, Juliana Lima e Weslei Allende, que falam de suas carreiras militares e dos problemas cotidianos enfrentados nas ruas e nos quarteis. O filme revela o que leva um jovem a ingressar na PM, que recebe pessoas de todas as categoriais sociais atraídas por um emprego estável e que lhes permite ascensão social e profissional.
Um policial fala dos rigores do treinamento, o que inclui até o tapa na cara, mas que aparece como uma forma de compreender e superar o absurdo das ruas onde há o risco de confrontos com quadrilhas armadas. Outro depoimento destaca que hoje, com traficantes turbinados com armas pesadas e de grosso calibre, “enfrentamos uma guerrilha urbana, bem diferente do que foi a guerrilha do Araguaia”. Ele observa que a polícia enfrenta hoje táticas de guerrilha e bondes organizados para o combate com o apoio de carros e motos, o que lhes dá maior mobilidade.
Em síntese, a questão básica do policial é a sua sobrevivência em áreas conflagradas,  afinal, como diz um dos entrevistados, a polícia não existe para estabelecer o paraíso, mas para evitar que o inferno se instale. O coronel Ibis Pereira considera que o grande problema do momento não é o enfrentamento do tráfico de drogas, mas do tráfico de armas. Ele também defende uma ação legalista da policia no que diz respeito aos direitos fundamentais  dos que estão na outra margem da lei.
O coronel Angelo observa que os índices de homicídio mais baixos na zona sul não tem nada a ver com a polícia ou sua ação, mas é uma questão de ordem antropológica e social, a mesma que condena as pessoas que vivem na pobreza na periferia a uma morte prematura e à exclusão social: “com isso fica definido quem vai ser preso e quem vai morrer, mas não é a polícia que define isso.”  Ele atribui este problema complexo ao conjunto de fatores de ordem econômica, cultural e social, o que leva o Rio a um dos piores cenários de violência no país e no mundo, que podem a ser associados ainda à impunidade e à corrupção.
Outro policial lembra que a policia leva desvantagem no confronto com o tráfico, porque “os caras estão com fuzis importados e os PMs nas ruas de 40”. Para outro policial o filme Tropa de Elite mostra o mal para chegar ao bem a partir de fatos reais. Também revela que duas escolas de samba já saíram nos carnavais cariocas com fardas do Bope. Outro PM revela que anda armado 24 horas por dia e não dispensa o seu revólver quando dorme, com a arma ao lado da cama sempre ao alcance da mão.
Além da elevada mortalidade em confrontos, a PM também registra um alta taxa de suicídios e é para um psicólogo da corporação, uma profissão socialmente invisível, que não é valorizada pela comunidade. A lição que fica é que   “PM é igual criança, longe dá saudade, perto incomoda”, como afirma um oficial linha dura em seu depoimento, o filme vale para uma reflexão sobre o tema e um debate sobre uma questão complexa, que envolve a segurança de todos nós, no momento em que se fala da desmilitarização da PM e de mudanças no sistema de relações com a polícia civil, que funciona como uma espécie de polícia judiciária.(Kleber Torres)

sábado, 9 de março de 2019

Paprika uma viagem onírica além do universo real



Ninguém distingue o que é realidade ou ficção, nem o onírico ou o real em Paprika (Papurika), um filme japonês animado  policial e de ficção cientifica produzido em 2006 e dirigido pelo cineasta Satoshi Kon, já falecido em consequência de um câncer de pâncreas aos 46 anos, mas que nos legou cinco  filmes -um deles inacabado –  e uma série, sendo o mais famoso deles  Perfect Blue. Paprika teve  o roteiro  baseado no livro de mesmo nome  de Yasutaka Tsutsui, tendo como referência o roubo de um aparelho – DC Mini - que permite aos terapeutas entrarem nos sonhos dos pacientes para  ajudá-los na solução de problemas ou traumas psicológicos.
A trilha sonora foi assinada por Susumu Hirasawa e a  primeira a usar  Vocaloid, ou seja, o recurso de cantoras virtuais nipônicas, que fazem shows em hologramas. Paprika também é rico em referências a outros filmes como o Maior Espetáculo da Terra, Tarzan ou mesmo na discussão sobre a elaboração de planos e sequências, com reflexões sobre o cinema, a vida e a questão da privacidade, como a possibilidade até da invasão de sonhos dos personagens. Afinal o que é sonho ou real e o que seria o irreal
Tudo começa no futuro, com o desenvolvimento de uma nova terapia em que um dispositivo, o DC Mini, permite ao usuário visualizar e monitorar  os sonhos das pessoas. O trabalho coordenado pela médica  Atsuko Chiba, que  usa a máquina experimentalmente, mas sem autorização para ajudar aos pacientes psiquiátricos fora do centro de pesquisa, usando para isso Paprika, um espécie de alterego que navega e transita no mundo dos sonhos.
Paprika acompanha os sonhos  do detetive Toshimi Konakawa, atormentado por um pesadelo recorrente de um filme gravado em super oito na sua juventude e que culmina na investigação de um possivel homicídio. Um aliado de Chiba em suas pesquisas é o cientista Kosaku Tokita, o inventor do Mini DC, um projeto inacabado e em fase de desenvolvimento, mas o equipamento acaba desaparecendo gerando cobranças do chefe do departamento de pesquisas, Toratarō Shima, que é um deficiente físico e acaba como vilão da história.
No filme os sonhos e realidade se confundem. Assim, Paprika, torna-se uma entidade separada e independente de Chiba graças aos sonhos e fusão realidade. Em meio ao caos, Tokita, assume a forma de um robô gigante, come Chiba e se prepara para fazer o mesmo para Paprika. Enquanto isso, o presidente do instituto de pesquisa assume a forma de um pesadelo vivo, uma espécie de buraco negro que a tudo devora com seus sonhos  escatológicos de onipotência, ameaçando escurecer e dominar um mundo de sombras com seus delírios malignos, mas acaba detido por uma força antagônica muito além do equilíbrio entre o yin e yang, mas  inversamente proporcional à sua, acabando com o que seria um pesadelo ou talvez o fim do mundo.
O  filme instigante, difícil, desafiador, mas deveras interessante, inteligente e nos oferece uma oportunidade de releitura da cultura oriental com sua sabedoria e simbolismos próprios, o que nos aproxima através de um mundo cada vez mais globalizado e que continua redondo, girando em torno do sol e adormecido na sombra da noite com seus sonhos ou pesadelos. (Kleber Torres)


Ficha técnica:

Título : Paprika (Papurika)
Direção: Satoshi Kon
Roteiro: Yasutaka Tsutsui
Elenco:  Megumi Hayashibara, Tōru Furuya, Tōru Emori. Seijirō Inui, Katsunosuke Hori,  Akio Ōtsuka e  Kōichi Yamadera
Trilha sonora: Susumu Hirasawa 

Ano : 2006