sábado, 16 de março de 2019

Um Rio muito além do medo e acima do bem ou do mal



Ao documentário Rio do Medo, exibido pela Globonews,  caberia outro título, porque ele não se refere apenas ao Rio de Janeiro, reconhecidamente um dos estados mais violentos do país, com o registro de uma média de 6.731 mortes em 2017, o que representa uma mortalidade de 40 pessoas para cada 100 mil habitantes. O filme tem como foco a Polícia Militar, considerada uma das forças que mais mata e a que mais morre no país, com um efetivo de 47 mil homens, um terço deste total afastado das ruas para tratamento de saúde, mas registrando  no mesmo período  134 mortes, o que representa uma média de 285 mortes violentas para cada 100 mil  pessoas, ou seja, uma letalidade sete vezes maior que a do conjunto da população, indicando que ser policial no Rio é uma profissão de risco, pois cada policial tem sete vezes mais chances de morrer do que o cidadão comum.
Dirigido e roteirizado por Ernesto Rodrigues, o filme reúne um conjunto de entrevistas com policiais da reserva e da ativa, inclusive oficiais de alta patente. A ideia partiu da notícia de um aniversário de uma criança que teve como motivo da festa infantil o Bope (Batalhão de Opreações Especiais), uma tropa de elite retratada no cinema em dois filmes (Tropa de Elite 1 e 2), que hoje concentra 1,08% do efetivo da PM e é considerada preparada para o combate com uso de armas pesadas.
Entre os depoimentos  estão os  coronéis da reserva e ex-comandantes gerais da PM, Ubiratan Angelo, que veio de uma família humilde da periferia, como dançarino de funk e com cabelo black power, mas chegou ao posto mais alto da corporação e Ibis Pereira, além do coronel Vinicius Cavalieri, fundador do Bope e que por segurança orientava os filhos para não dizerem que o pai era policial militar, mas professor de educação física. Ele também tinha um pessoal lema em operação de confronto: “se uma mãe tem que chorar, que não seja a minha”.
O elenco inclui ainda médicos e psicólogos da PM ,  além de policiais da reserva como Paulo Storani, hoje consultor na área de segurança,  que terminou um namoro porque entrou na PM e a moça era contra. A relação inclui os majores Gian Carlo Sanches, Bianca Neves e Rosana Cardoso, além de Ana Fucs, Juliana Lima e Weslei Allende, que falam de suas carreiras militares e dos problemas cotidianos enfrentados nas ruas e nos quarteis. O filme revela o que leva um jovem a ingressar na PM, que recebe pessoas de todas as categoriais sociais atraídas por um emprego estável e que lhes permite ascensão social e profissional.
Um policial fala dos rigores do treinamento, o que inclui até o tapa na cara, mas que aparece como uma forma de compreender e superar o absurdo das ruas onde há o risco de confrontos com quadrilhas armadas. Outro depoimento destaca que hoje, com traficantes turbinados com armas pesadas e de grosso calibre, “enfrentamos uma guerrilha urbana, bem diferente do que foi a guerrilha do Araguaia”. Ele observa que a polícia enfrenta hoje táticas de guerrilha e bondes organizados para o combate com o apoio de carros e motos, o que lhes dá maior mobilidade.
Em síntese, a questão básica do policial é a sua sobrevivência em áreas conflagradas,  afinal, como diz um dos entrevistados, a polícia não existe para estabelecer o paraíso, mas para evitar que o inferno se instale. O coronel Ibis Pereira considera que o grande problema do momento não é o enfrentamento do tráfico de drogas, mas do tráfico de armas. Ele também defende uma ação legalista da policia no que diz respeito aos direitos fundamentais  dos que estão na outra margem da lei.
O coronel Angelo observa que os índices de homicídio mais baixos na zona sul não tem nada a ver com a polícia ou sua ação, mas é uma questão de ordem antropológica e social, a mesma que condena as pessoas que vivem na pobreza na periferia a uma morte prematura e à exclusão social: “com isso fica definido quem vai ser preso e quem vai morrer, mas não é a polícia que define isso.”  Ele atribui este problema complexo ao conjunto de fatores de ordem econômica, cultural e social, o que leva o Rio a um dos piores cenários de violência no país e no mundo, que podem a ser associados ainda à impunidade e à corrupção.
Outro policial lembra que a policia leva desvantagem no confronto com o tráfico, porque “os caras estão com fuzis importados e os PMs nas ruas de 40”. Para outro policial o filme Tropa de Elite mostra o mal para chegar ao bem a partir de fatos reais. Também revela que duas escolas de samba já saíram nos carnavais cariocas com fardas do Bope. Outro PM revela que anda armado 24 horas por dia e não dispensa o seu revólver quando dorme, com a arma ao lado da cama sempre ao alcance da mão.
Além da elevada mortalidade em confrontos, a PM também registra um alta taxa de suicídios e é para um psicólogo da corporação, uma profissão socialmente invisível, que não é valorizada pela comunidade. A lição que fica é que   “PM é igual criança, longe dá saudade, perto incomoda”, como afirma um oficial linha dura em seu depoimento, o filme vale para uma reflexão sobre o tema e um debate sobre uma questão complexa, que envolve a segurança de todos nós, no momento em que se fala da desmilitarização da PM e de mudanças no sistema de relações com a polícia civil, que funciona como uma espécie de polícia judiciária.(Kleber Torres)

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