quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Imagem, + música e a linguagem absoluta do cinema


 

Sem necessidade de roteiro ou de palavras, o documentário Um homem com uma câmera (Tchelovek s Kinoapparatom) mostra o dia a dia de três cidades soviéticas: Moscou e Kiev, na Ucrânia e Riga, na Estônia, em 1929. Nele,  o cinegrafista Michail Kaufman revela a rotina urbana de modo impessoal, desde o amanhecer ainda com as ruas vazias e que vão gradualmente se enchendo de pessoas e veículos, indo até o anoitecer com cenas de trabalho, atividades e lazer cotidianos.

 

O próprio diretor Dziga Vertov, autor e executor do projeto, escreveu no seu diário e informa na apresentação do documentário, que o  filme apresenta uma experiência revolucionária na comunicação cinemática de eventos visíveis, sem a ajuda de intertítulos, sem roteiro ou um cenários específicos,  prescindindo de atores ou palavras. Para ele, esse trabalho de cunho experimental objetivava criar uma linguagem absoluta verdadeiramente internacional do cinema baseada na sua total separação da linguagem do teatro e da literatura.

 

O filme é interessante pela sua importância histórica e trabalha de forma ampla a linguagem do cinema casando o movimento de câmeras bem como das imagens das pessoas ou máquinas em movimento, com  a música da  The Cinematic Orchestra, uma companhia inglesa que produziu  uma trilha sonora para o filme e participou da exibição de Um homem com uma Câmera em diversos festivais.

 

Cabe salientar que em 1996, o compositor norueguês Geir Jenssen, o  Biosphere, reescreveu a trilha sonora para o filme,  seguindo  as instruções  do diretor Dziga Vertov para que o filme fosse acompanhado por um pianista. O trabalho  foi interrompido e completado anos depois por Per Martinsen, conhecido como Mental Overdrive. O filme foi recuperado em 2014 e foi exibido no final de 2020 no Telecine Cult.

 

A ideia de Vertov era radical e revolucionária: ele se propôs a  filmar e editar a realidade, mostrando para isso um dia numa  metrópole, sem diálogos e nem a edição de imagens captadas por um cinegrafista. O material foi  reunido em seis rolos e a música com o seu ritmo faz o contraponto com as imagens sequenciais e aleatórias convivendo com sinais de trânsito e fusões propositais.

 

Um homem com uma câmera  começa com um efeito especial mostrando uma câmera  e o irmão do diretor, Michail Kaufman, com o seu equipamento de filmagem sobre ela. Ele  é o único personagem mostrado ao longo do documentário  filmando a vida em  cidades de grande porte, mas tudo começa num cinema vazio e que vai se enchendo gradualmente de espectadores, em seguida,  a orquestra começa a tocar para exibição de um filme sobre o filme em exibição numa experiência metalinguística.

 

As sequências  revelam imagens feitas ainda durante a madrugada, com as ruas e avenidas vazias de cidades  adormecidas e, gradualmente, elas vão ganhando vida e movimento, com o despertar dos moradores e o começo  das suas atividades, com a abertura de lojas ou mostrando  um berçário. As cenas se sucedem com a circulação de bondes e trens, além de máquinas e engrenagens ligadas nas indústrias, que se somam a equipamentos fotográficos, telefones, lâmpadas acesas, pneus e carros em movimento, com muita gente nas ruas e em diversos tipo de atividades.

 

No filme não aparecem  autoridades e nem celebridades, apenas  pessoas comuns mostrando a sua realidade cotidiana revelada em imagens, às vezes de gente anônima  numa rua distante, nos interiores de edifícios e em casas, e sempre com um homem com a sua câmera saindo para as ruas, onde filma pombos, carros e seus passageiros, trilhos de estrada de ferro e de bondes cujas imagens se fundem de forma  criativa.

 

Numa outra sequência, uma mulher acorda e de forma sensual se veste lentamente. Também mendigos são  filmados nas ruas, onde aparecem flores, janelas fechadas e até aviões cortando o espaço, terminando muitas vezes com um close na lente da câmera, a qual também funciona como um olho do cineasta e até mesmo do espectador diante da sequência abrupta de imagens que se sucedem.

 

Em geral, as cidades, as pessoas e os objetos são  observados à distância, em planos gerais ou em closes,  sem que diretor ou o câmera que circula  entre elas interfiram  na rotina, sem nenhuma  atuação, mas  revelando ação pura. No documentário máquina se torna também uma personagem da obra e se insere na rotina das cidades e das pessoas, em contraposição como a mulher que abre a janela descortinando a paisagem urbana e uma outra que pedala uma bicicleta.

 

O filme também aparece como instrumento  de propaganda ideológica  do regime socialista durante o período stalinista, mostrando  as facetas urbanização acelerada, o avanço da industrialização e da tecnologia, sugerindo  crescimento econômico e desenvolvimento. Ao mesmo tempo, no documentário há espaço para mostrar os dramas humanos, com trabalhadores em condições adversas suando nas fábricas ou nas minas, viajando apinhados no transporte, além do socorro à vítimas de acidentes e a mobilização de bombeiros num combate a incêndios.

 

Tudo funciona no filme  como um grande painel e um grande quebra cabeças envolvendo  pessoas que nascem, crescem e morrem, casam e divorciam-se, trabalham, sorriem e choram. Além de servir como uma espécie de espelho da sociedade urbanizada, o documentário apresenta em seu bojo, numa espécie processo de edição paralela, não apenas a realidade em preto e branco captada pelas câmeras,  mas mostrando uma espécie making of, de como as imagens foram registradas nas mais diversas circunstâncias e mesmo na revelação do filme e da sua montagem numa mesa de edição, com escolha dos frames e das sequências de cenas intercaladas.

  

Em essência , Um homem com uma câmera, que foi incluído num livro sobre os 1001 filmes que se deve assistir antes de morrer, atingiu o seu objetivo ao potencializar na tela a força da linguagem cinematográfica e que foi adaptada à dinâmica dos telejornais de nossos dias, os quais não conseguiram prescindir das palavras dos entrevistados ou dos locutores, embora cada sequencia mostrada valha por milhares de palavras, valendo por isso como uma aula sobre cinema, jornalismo e servindo de referência para outros documentários (Kleber Torres).


Ficha técnica:

Título – Um homem com uma câmera (Tchelovek s kinoapparatom)

Direção : Dziga Vertov

Cinematografista: Mikhail Kaufman     

Editor assistente : Elizaveth Svilova

Ano:  1929

Preto & Branco


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