Sem necessidade de roteiro ou de palavras, o documentário Um homem com uma câmera (Tchelovek s Kinoapparatom) mostra
o dia a dia de três cidades soviéticas: Moscou e Kiev, na Ucrânia e Riga, na Estônia,
em 1929. Nele, o cinegrafista Michail
Kaufman revela a rotina urbana de modo impessoal, desde o amanhecer ainda com
as ruas vazias e que vão gradualmente se enchendo de pessoas e veículos, indo
até o anoitecer com cenas de trabalho, atividades e lazer cotidianos.
O
próprio diretor Dziga Vertov, autor e executor do projeto, escreveu no seu
diário e informa na apresentação do documentário, que o filme apresenta uma experiência revolucionária
na comunicação cinemática de eventos visíveis, sem a ajuda de intertítulos, sem
roteiro ou um cenários específicos,
prescindindo de atores ou palavras. Para ele, esse trabalho de cunho experimental
objetivava criar uma linguagem absoluta verdadeiramente internacional do cinema
baseada na sua total separação da linguagem do teatro e da literatura.
O filme é interessante
pela sua importância histórica e trabalha de forma ampla a linguagem do cinema
casando o movimento de câmeras bem como das imagens das pessoas ou máquinas em
movimento, com a música da The Cinematic Orchestra, uma companhia
inglesa que produziu uma trilha sonora
para o filme e participou da exibição de Um
homem com uma Câmera em diversos festivais.
Cabe
salientar que em 1996, o compositor norueguês Geir Jenssen, o Biosphere, reescreveu a trilha sonora para o
filme, seguindo as instruções
do diretor Dziga Vertov para que o filme fosse acompanhado por um
pianista. O trabalho foi interrompido e
completado anos depois por Per Martinsen, conhecido como Mental Overdrive. O
filme foi recuperado em 2014 e foi exibido no final de 2020 no Telecine Cult.
A ideia
de Vertov era radical e revolucionária: ele se propôs a filmar e editar a realidade, mostrando para
isso um dia numa metrópole, sem diálogos
e nem a edição de imagens captadas por um cinegrafista. O material foi reunido em seis rolos e a música com o seu
ritmo faz o contraponto com as imagens sequenciais e aleatórias convivendo com
sinais de trânsito e fusões propositais.
Um homem com uma
câmera
começa com um efeito especial mostrando
uma câmera e o irmão do diretor, Michail
Kaufman, com o seu equipamento de filmagem sobre ela. Ele é o único personagem mostrado ao longo do
documentário filmando a vida em cidades de grande porte, mas tudo começa num
cinema vazio e que vai se enchendo gradualmente de espectadores, em seguida, a orquestra começa a tocar para exibição de um
filme sobre o filme em exibição numa experiência metalinguística.
As
sequências revelam imagens feitas ainda
durante a madrugada, com as ruas e avenidas vazias de cidades adormecidas e, gradualmente, elas vão ganhando
vida e movimento, com o despertar dos moradores e o começo das suas atividades, com a abertura de lojas
ou mostrando um berçário. As cenas se
sucedem com a circulação de bondes e trens, além de máquinas e engrenagens
ligadas nas indústrias, que se somam a equipamentos fotográficos, telefones,
lâmpadas acesas, pneus e carros em movimento, com muita gente nas ruas e em
diversos tipo de atividades.
No
filme não aparecem autoridades e nem
celebridades, apenas pessoas comuns
mostrando a sua realidade cotidiana revelada em imagens, às vezes de gente
anônima numa rua distante, nos
interiores de edifícios e em casas, e sempre com um homem com a sua câmera
saindo para as ruas, onde filma pombos, carros e seus passageiros, trilhos de
estrada de ferro e de bondes cujas imagens se fundem de forma criativa.
Numa
outra sequência, uma mulher acorda e de forma sensual se veste lentamente. Também
mendigos são filmados nas ruas, onde
aparecem flores, janelas fechadas e até aviões cortando o espaço, terminando muitas
vezes com um close na lente da câmera, a qual também funciona como um olho do
cineasta e até mesmo do espectador diante da sequência abrupta de imagens que
se sucedem.
Em
geral, as cidades, as pessoas e os objetos são observados à distância, em planos gerais ou em
closes, sem que diretor ou o câmera que
circula entre elas interfiram na rotina, sem nenhuma atuação, mas revelando ação pura. No documentário máquina
se torna também uma personagem da obra e se insere na rotina das cidades e das
pessoas, em contraposição como a mulher que abre a janela descortinando a
paisagem urbana e uma outra que pedala uma bicicleta.
O
filme também aparece como instrumento de
propaganda ideológica do regime
socialista durante o período stalinista, mostrando as facetas urbanização acelerada, o avanço da
industrialização e da tecnologia, sugerindo crescimento econômico e desenvolvimento. Ao
mesmo tempo, no documentário há espaço para mostrar os dramas humanos, com
trabalhadores em condições adversas suando nas fábricas ou nas minas, viajando
apinhados no transporte, além do socorro à vítimas de acidentes e a mobilização
de bombeiros num combate a incêndios.
Tudo
funciona no filme como um grande painel
e um grande quebra cabeças envolvendo
pessoas que nascem, crescem e morrem, casam e divorciam-se, trabalham, sorriem
e choram. Além de servir como uma espécie de espelho da sociedade urbanizada, o
documentário apresenta em seu bojo, numa espécie processo de edição paralela,
não apenas a realidade em preto e branco captada pelas câmeras, mas mostrando uma espécie making of, de como
as imagens foram registradas nas mais diversas circunstâncias e mesmo na
revelação do filme e da sua montagem numa mesa de edição, com escolha dos
frames e das sequências de cenas intercaladas.
Em
essência , Um homem com uma câmera, que
foi incluído num livro sobre os 1001 filmes que se deve assistir antes de
morrer, atingiu o seu objetivo ao potencializar na tela a força da linguagem
cinematográfica e que foi adaptada à dinâmica dos telejornais de nossos dias, os
quais não conseguiram prescindir das palavras dos entrevistados ou dos
locutores, embora cada sequencia mostrada valha por milhares de palavras,
valendo por isso como uma aula sobre cinema, jornalismo e servindo de
referência para outros documentários (Kleber
Torres).
Ficha técnica:
Título
– Um homem com uma câmera (Tchelovek s kinoapparatom)
Direção : Dziga Vertov
Cinematografista: Mikhail Kaufman
Editor assistente : Elizaveth Svilova
Ano:
1929
Preto
& Branco
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