domingo, 14 de julho de 2024

Um rei que sabia que a fama é uma decomposição lenta e passageira

Um dos pais e talvez o verdadeiro Rei do Rock, Chuck Berry aliás Charles Edward Anderson Berry, para os íntimos, é o tema do documentário de Jon Brewer, com 103 minutos, lançado em 2019 e exibido recentemente pelo Bis, primeiro canal de televisão inteiramente dedicado à música no Brasil. O filme Chuck Berry revela a face humana, a inventividade, os dramas, perseguições, discriminação e até a decadência física de um das artistas incônicos que transitou do blues para o rock, ajudou a quebrar barreiras raciais, moldando o som com seus riffs geniais e transformando sua guitarra numa espécie de instrumento de percussão, além de influenciar decisivamente a atitude contestadora e a própria cultura do rock ‘n’ roll, mas deixando ao mesmo tempo um legado imortal que continua a inspirar músicos e os ouvintes até os dias hodiernos. O filme que teve a participação de estrelas como Alice Cooper, Bruce Springsteen, Bo Didley, além dos Beatles, dos Rolling Stones, Jerry Lee Lewis, Paul McCartney, Keith Richards e Eric Clapton e outtros astros do rock, bem como da mulher do artista Themetta Sugss, que foi casada com ele por 69 anos para quem “quando ele chegava em casa era apenas o homem com quem tinha me casado” e os próprios filhos e netos que o viam como o homem Charles Edward Anderson Berry. Todos compartilham suas visões e perspectivas sobre o impacto e mesmo a influência do artista no mundo da música. O filme também inclui imagens de um show realizado em sua cidade natal, St. Louis, Missouri, durante seu aniversário de 60 anos, quando entra no palco em um vistoso cadillac vermelho. Chuck Barry separava a sua carreira de astro pop e com a de pai e marido, ao mesmo tempo como empresário investia e construia imóveis – havia aprendido carpintaria com o pai - ou em projetos como um parque temático, que levou o seu sobrenome e tinha uma piscina em forma de guitarra. O empreendimento acabou depredado depois de um show contratado por terceiros que não pagaram ao artista que se apresentaria. Degostoso o artista abandonou o projeto e deixou tudo se deteriorar com o tempo: os prédios, os veículos, como o ônibus que usava para turnês nos Estados Unidos e outros equipamentos, inclusive tratores, transformados em sucata. O artista também nos legou músicas curtas, que em média com três minutos de duração contavam histórias que tocavam ao público jovem, falando de carros potentes e velozes, com asas ou sobre paqueras e a vida dos adolescentes, os ingredientes básicos das canções de um artista que encantava e fazia dançar brancos e negros, derrubando barreiras raciais antes mesmo das conquistas de Martin Luther King. Johnny B. Goode, cujo riff copia nota a nota o solo Ain’t thatr Just Like a Woman(1946), inetrpretada pelo guitarrista Carl Hogan, foi uma homenagem ao seu parceiro por várias décadas, o pianista Johnnie Johnson, com quem formou um trio. Descrito na música como um menino caipira do sul da Louisiana, e que saiu pelo mundo para se transformar num músico de sucesso. Já Meybellene, um dos seus outros hits, tem como referência uma mulher que não pode ser real - cujo nome foi chupado de uma fábrica de cosméticos - , e que o viu do seu Ford V8. Como um artista completo – ele era compositor, cantor com uma voz não marcante como a de Elvis Presley, mas com uma dicção clara e que tinha como referência vocal Nat King Cole, além de encantar o público com seu rebolado e passos magistrais, que talvez tenham sido copiados do humorista Groucho Marx. Em termos de inovação, Chuck Berry também se importalizou por seus riffs de guitarra icônicos -uma de suas marcas registradas - em músicas como Johnny B. Goode, Roll Over Beethoven, School Day ou Rock and Roll Music, que influenciaram gerações de músicos, complementados por letras líricas e tendo como pano de fundo a narrativa de histórias sobre vida cotidiana dos jovens americanos, sempre envolvendo carros e um romance, o que conquistou o gosto do público com um ritmo inebriante. Suas músicas foram gravadas por grandes nomes do rock, inclusive por bandas como os Beatles e os Rolling Stones. O fato é que Chuck Barry foi um artista simplório, que na madureza fazia shows viajando sozinho, levando sua guitarra e a escova de dentes, mas só tocava em eventos cujos músicos – que nem sempre conhecia – fossem sindicalizados, para receber um cachê em espécie de US$ 10 mil por apresentação. No palco, o homem simples e vestido com roupas comuns se transformava num showman excepcional, impondo um estilo energético ao tocar sua guitarra com performances que influenciaram a muitos artistas, promovendo ao mesmo tempo audiências multirraciais onde brancos e negros dançavam no mesmo palco e no mesmo espaço. Alice Cooper considera que Berry implantou o jeito de ser do rock and roll e por isso emerge como um dos guitarristas mais importante e influente da história da música, além de ter sido um elo fundamental de ligação entre o jazz, o blue e o rock. O ex-beatle Paul MaCartney, que foi um fã incondicional, o definiu no filme com apenas uma palavra : “um poeta.” Já a revista Time, uma das mais lidas pelos americanos estampou em sua capa o pedido de um astronauta americano solitário no espaço sideral: “mandem-me mais Chuck Barry” Mas a carreira do artista teve altos e baixos, envolvendo processos e prisões. A primeira, ainda na adolescência quando foi acusado de roubo de um carro, usado para empurrar o seu potente carrro com asas o que acabou se transformando em música. Ele também  passou quase dois anos na prisão no começo dos anos 1960 depois de ser acusado e considerado culpado por um crime federal, ao levar uma garota de 14 anos com a finalidade de se prostituir em outro estado. Jé em 1990, muitas mulheres entraram com uma ação contra Barry, que as teria gravado no banheiro feminino do restaurante do cantor, St. Louis, onde residia com a família, o que pode ter sido uma armação de autoridades policiais brancas contra o artista e empresário negro. O artista também foi acusado de tráfico de drogas – maconha e cocaína - , com provas refutáveis, uma vez que a polícia havia encontrado beatas – restos de cigarros de maconha – num imóvel abandonado do roqueiro e também foi preso três dias após se apresentar na Casa Branca, numa exibição para o presidente dos Estados Unidos, acusado de sonegação fiscal. O fato é que muitas das acusações podem ter sido forjadas em função da cor do artista, o que fica implícito de certa forma no filme Chuck Barry. O próprio diretor e produtor do filme, Jon Brewer, declarou em entrevista à revista Rolling Stone EUA, que enquanto desenvolvia o projeto do documentário, ele estava interessado em explorar “Como um artista negro tocou em uma rádio branca naqueles dias.” Ele destacou que, enquanto analisava os arquivos, aprendeu que “há tanta coisa registrada que não representa como ela realmente era. Um exemplo é quando aprendemos a razão para Berry ser conhecido por sua abordagem calculista em relação aos negócios e finanças. Ele tinha sido enganado por produtores e assessores de eventos- mas apenas uma vez” O fato é que em função dos problemas e dificuldades enfrentadas ao longo da vida, Chuck Berry dizia: ‘nunca deixe o mesmo cachorro te morder duas vezes,’ e, para ter certeza que estava sendo pago, recebia sempre sua cota em dinheiro e antes de subir ao palco. O filme Chuck Barry teve sua estréia no Festival de Nashville revelando as diversas facetas de um artista que legou um grande patrimônio imobiliário para os seus descendentes, construído ao longo dos anos um empresário muito capacitado e um cuidadoso artesão, que também foi um dos pais e talvez o Rei do Rock, primeiro e único, que conheceu a a fama, a prisão e enfrentou a velhice e a decadência, esquecendo parte das letras das musicas que cantava em shows com idade avançada – sendo mesmo assim aplaudido apoteoricamente pelo público – e acometido com perda crescente da audição, o que é natural para um artista que dizia que “a fama é decomposição lenta e passará” e olhe que os latinos ensivavam que sic transit gloria mundi lembrando a nós reles mortais que a gloria do mundo é passageira. (Kleber Torres)

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