O ovo da serpente (Das Schlangenei no título alemão) de
Ingmar Bergmann deve ser encarado como uma grande metáforan atemporal sobre o medo e a gênese do autoritarismo e por
tabela do nazismo, que tem na sua essência a banalização do mal e o foco na
perseguição radical aos judeus – o outro - até o horizonte de uma solução final
e definitiva para a sua pretendida erradicação da face da terra. O filme
estadunidense e alemão de 1977, foi
produzido por Dino De Laurentiis, dirigido por Ingmar Bergman, e
estrelando por um elenco expressivo integrado por David Carradine (no seu melhor desempenho
dramático), que interpretou Abel Rosenberg, ao lado de Liv Ulmann (Manuela) e
de personagens expressivos como os atores Gert Fröbe, Heinz Bennent e James
Whitmore, que faz o papel de um padre que se desculpa pela indiferença e omissão (talvez até da Igreja)
diante da escalada do mal.
O filme tem o cenário
ambientado na Berlim dos anos 20, uma
cidade cosmopolita afetada pelo fim da primeira guerra mundial, após a rendição
da Alemanha e um período de turbulência política e econômica, com uma inflação
em que um dólar chegou a valer cinco bilhões de marcos. Nesta época, a moeda
alemã não tinha nenhum valor de troca, sendo usada por peso até mesmo na compra
de produtos básicos que faltavam nos mercados e mercearias, facilitando com o
desemprego generalizado o avanço do nacional socialismo liderado por Adolf
Hitler, até então um personagem desconhecido no cenário da Alemanha e do mundo.
Cabe lembrar ainda que este foi o primeiro e único filme hollywoodiano de Bergman e o título foi extraído de uma
fala de Brutus, personagem da obra Julius Caesar, de Shakespeare: And therefore think him as a serpent's egg,/Which
hatch'd, would, as his kind grow mischievous”( E, portanto, acho que ele como um ovo de serpente,/Que, ao ser chocado seria
como sua espécie crescer travesso). Tudo se passa em novembro de
1923, em Berlim, durante o agravamento
de uma profunda crise econômica, política e social que afeta a toda a população
e quando começa uma onda de antisemitísmo, com a atribuição aos judeus de serem
responsáveis pela derrota alemã na guerra e mais ainda pela exploração do povo
germânico empobrecido.
Neste ínterim aparece o trapezista de circo, que é um judeu
norte-americano, Abel Rosenberg. Ele chega à pensão onde mora e encontra seu
irmão, o também artista Max e se depara com o mesmo morto com um tiro na boca,
um suicídio aparente, mas sem nenhuma explicação lógica. O complicador é que os
dois haviam brigado e não estavam mais trabalhando juntos num circo e em função
da separação e da sua morte Abel começa
a beber sem parar, tornando-se um alcoólatra .
Ele vai a polícia e é interrogado pelo Inspetor Bauer, que
ao mesmo tempo lê num jornal sobre judeus assassinos, os quais exterminam
pessoas sem motivo aparente num tempo de crise, uma notícia que não é levada a
sério por Abel, para quem “se um judeu se mete em encrenca a culpa é dele, que
é um estúpido.” Em seguida, ele procura por Manuela, ex-mulher do irmão e que também é artista, mas agora se apresenta num
cabaré de segunda categoria e a quem entrega uma carta ilegível escrita pelo
Max, mas que fala de um possível envenenamento.
Os dois passam a morar juntos e tentam se ajudar mutuamente,
mas Abel se aborrece quando Manuela lhe conta sobre seu relacionamento com
Vergérus (Heinz Bennent), um antigo conhecido detestado por ele, a quém conhecia desde a juventude e ainda
criança se comprazia em maltratar e matar animais. Depois, ao ver um judeu sendo espancado por
integrantes de uma guarda nazista, Abel comenta que está acordando de um
pesadelo, mas descobre que a vida real ainda é bem pior: “eu não consigo
entender nada. Vi um homem sendo surrado e a polícia simplesmente virou às costas”.
Sem dinheiro e despejados
de onde estavam, Manuela e ele acabam aceitando um quarto oferecido por
Vergérus na Clinica Santa Ana, cujo
letreiro se parece na forma e não na grafia, com o dos campos de concentração,
que destacavam que o trabalho liberta o homem. Abel também aceita um emprego de
arquivista na mesma clínica onde
Vergérus trabalha e que funciona como um laboratório de experiência com cobaias
humanas.
Neste ínterim, o inspetor Bauer chama Abel à delegacia e lhe
mostra diversos cadáveres no necrotério,
de pessoas conhecidas do rapaz, uma das vítimas, Maria Stern deixa uma carta
onde fala que estava morrendo de medo e sentido uma dor insuportável. Bauer
informa que sete mortes misteriosas ocorreram em torno de Abel e pede que ele reconstitua
suas ações desde 28 de outubro.
O trapezista diz que bebia desde a morte do irmão e ao pensar que é suspeito, tenta fugir
desesperadamente da delegacia, mas como o prédio é todo cercado e protegido por
grades, ele acaba contido pelos policiais, a quem diz que está detido
apenas por ser judeu. Porém, é solto logo depois, sem explicações, mas tendo de
deixar nas mãos da policia os dólares, a única moeda válida num país
contaminado por uma inflação galopante.
Na ocasião da sua soltura, o inspetor Bauer fala que está
preocupado consigo mesmo e com uma catástrofe que pode chegar a qualquer
momento, “pois temos um governo que não sabe aonde ir, onde nada se define
direito a não ser o medo.” Na clinica onde trabalha em tempo integral e
sem descanso, Manuela parece cada vez mais frágil e debilitada.
O filme faz referências ao 6 de novembro, com jornais
enegrecidos pelo medo, o governo impotente e em que os confrontos entre grupos
políticos de direita e de esquerda parecem inevitáveis. Manuela procura um
padre a quem se confessa alegando pensar que o suicídio do ex-marido foi sua
culpa e o padre a perdoa dizendo que “nós vivemos distantes de Deus e por isso
parece que ele não nos ouve”, e também pede perdão à mulher pela sua apatia e
indifereça.
Diante da crise, um judeu que é proprietário de uma casa
noturna fala de sair de Berlim e montar um cabaré e um bordel em Beirute. Neste
momento o cabaré é invadido por uma tropa de nazistas, que quebra tudo em nome
do povo e em protesto contra a perversão e decadência atribuída unilateralmente
aos judeus. O guarda pede ao empresário
que tire os óculos, para não quebrá-lo e
bate diversas vezes com o rosto da vitima em um balcão do estabelecimento
fazendo sangrar o seu nariz e a boca. Para completar a casa noturna é
incendiada pelo grupo de baderneiros.
Em casa, Abel diz a Manuela que precisa estar bêbado para
poder conseguir dormir e comenta que o pior nesta crise é que as pessoas estão
sem futuro ou simplesmente perderam o bonde do futuro. Na clínica onde trabalha
catalogando milhares de fichas, que transfere das pastas cinzas para amarelas,
ele encontra um cientista que morou sete anos na Inglaterra e que se
especializou em perversões eróticas. A clínica também realizava experimentos estranhos
e não muito convencionais com seres humanos .
Abel e Manuela descobrem então que foram vitimas de uma armadilha e que ambos
estão trancafiados e prisioneiros. Abel mata um dos cientistas na sala em que
trabalhava e que tinha os acessos protegidos por grades e cadeados, numa
espécie de labirinto de difícil acesso.
Já no dia 7 de novembro, não havia mais leite em Berlim e o
que é mais grave: muitas lojas e
mercearias estavam fechadas por falta de mercadorias, e por isso não havia
sequer o que vender. O marco alemão deixou de existir como moeda e era usado
aos quilos de notas para compra de ovos ou qualquer gênero alimentício. Manoela
morre e Abel encontra Vergérus que lhe anuncia que algo novo está por nascer e
lhe fala dos experimentos mortais com
drogas como Thanatoxina, que leva à loucura, à morte e ao suicídios, fazendo com que uma mãe mate o filho que
chora de forma incessante ou que um homem se suicide sem razões aparentes. A morte do seu irmão Max estaria relacionada
com estes experimentos.
Descrente de Hitler que não tinha em 1923 nem capacidade e
nem método – embora chegasse ao poder alguns anos depois - , Vergérus se
suicida em função da repressão da polícia com uma cápsula de cianureto e como
todo o psicopata que se preza, fez questão de assistir a sua própria morte se
olhando no espelho. Ele não chegou a ver a nova sociedade que duraria mil anos
e se despedaçou em 45, com um custo de 50 milhões de mortos. Seria este o preço
da insanidade? Mas qual o limite da loucura ?
PS – Abel conseguiu escapar dos policiais que o levavam para
embarcar numa estação de trem. Em compensação está desaparecido até hoje, o seu
paradeiro continua incerto e não sabido, coisa normal num período de
exacerbação do medo e do nascimento do autoritarismo, pois o ovo da serpente é
assim tem forma e conteúdo mesmo quando está sendo chocado. Shakespeare tinha
razão.(Kleber Torres - do livro O princípio das Ideias)
Ficha técnica:
Titulo: O Ovo da Serpente (Das Schlangene)
Direção Ingmar Bergman
Roteiro Ingmar Bergman
Elenco :
Liv Ullmann, David Carradine, Gert
Fröbe, Heinz Bennent, James Whitmore, Georg Hartmann, Fritz Strabner, Hans Quest, Wolfgang Weiser, Walter Schmidinger
e Grischa Huber
Editação: Petra von
Oelffen
Música : Rolf A. Wilhelm
Direção de arte: Werner Achmann
Fotografia: Sven
Nykvist
Produção: Dino de Laurentiis
Origem: Alemanha /
Estados Unidos
Ano: 1977
Duração: 120 minutos