domingo, 27 de março de 2016

Uma metáfora sobre a gênese do medo e do autoritarismo ou do nazismo








O ovo da serpente (Das Schlangenei no título alemão) de Ingmar Bergmann deve ser encarado como uma grande metáforan atemporal  sobre o medo e a gênese do autoritarismo e por tabela do nazismo, que tem na sua essência a banalização do mal e o foco na perseguição radical aos judeus – o outro - até o horizonte de uma solução final e definitiva para a sua pretendida erradicação da face da terra. O filme estadunidense e alemão de 1977, foi  produzido por Dino De Laurentiis, dirigido por Ingmar Bergman, e estrelando por um elenco expressivo integrado por  David Carradine (no seu melhor desempenho dramático), que interpretou Abel Rosenberg, ao lado de Liv Ulmann (Manuela) e de personagens expressivos como os atores Gert Fröbe, Heinz Bennent e James Whitmore, que faz o papel de um padre que se desculpa pela  indiferença e omissão (talvez até da Igreja) diante da escalada do mal.
O filme  tem o cenário  ambientado na Berlim dos anos 20, uma cidade cosmopolita afetada pelo fim da primeira guerra mundial, após a rendição da Alemanha e um período de turbulência política e econômica, com uma inflação em que um dólar chegou a valer cinco bilhões de marcos. Nesta época, a moeda alemã não tinha nenhum valor de troca, sendo usada por peso até mesmo na compra de produtos básicos que faltavam nos mercados e mercearias, facilitando com o desemprego generalizado o avanço do nacional socialismo liderado por Adolf Hitler, até então um personagem desconhecido no cenário da Alemanha e do mundo.
Cabe lembrar ainda que este foi o primeiro e  único filme hollywoodiano de Bergman e o  título foi extraído  de uma  fala de Brutus, personagem da obra Julius Caesar, de Shakespeare:  And therefore think him as a serpent's egg,/Which hatch'd, would, as his kind grow mischievous”( E, portanto, acho que ele como um ovo de serpente,/Que, ao ser chocado seria como sua espécie crescer travesso). Tudo se passa em novembro de 1923, em Berlim,  durante o agravamento de uma profunda crise econômica, política e social que afeta a toda a população e quando começa uma onda de antisemitísmo, com a atribuição aos judeus de serem responsáveis pela derrota alemã na guerra e mais ainda pela exploração do povo germânico empobrecido.
Neste ínterim aparece o trapezista de circo, que é um judeu norte-americano, Abel Rosenberg. Ele chega à pensão onde mora e encontra seu irmão, o também artista Max e se depara com o mesmo morto com um tiro na boca, um suicídio aparente, mas sem nenhuma explicação lógica. O complicador é que os dois haviam brigado e não estavam mais trabalhando juntos num circo e em função da separação  e da sua morte Abel começa a beber sem parar, tornando-se um alcoólatra .
Ele vai a polícia e é interrogado pelo Inspetor Bauer, que ao mesmo tempo lê num jornal sobre judeus assassinos, os quais exterminam pessoas sem motivo aparente num tempo de crise, uma notícia que não é levada a sério por Abel, para quem “se um judeu se mete em encrenca a culpa é dele, que é um estúpido.” Em seguida, ele procura por Manuela, ex-mulher  do irmão  e que  também é artista, mas agora se apresenta num cabaré de segunda categoria e a quem entrega uma carta ilegível escrita pelo Max, mas que fala de um possível  envenenamento.
Os dois passam a morar juntos e tentam se ajudar mutuamente, mas Abel se aborrece quando Manuela lhe conta sobre seu relacionamento com Vergérus (Heinz Bennent), um antigo conhecido detestado por ele,  a quém conhecia desde a juventude e ainda criança se comprazia em maltratar e matar animais.  Depois, ao ver um judeu sendo espancado por integrantes de uma guarda nazista, Abel comenta que está acordando de um pesadelo, mas descobre que a vida real ainda é bem pior: “eu não consigo entender nada. Vi um homem sendo surrado e a polícia simplesmente virou às costas”.
Sem dinheiro e  despejados de onde estavam, Manuela e ele acabam aceitando um quarto oferecido por Vergérus na Clinica Santa Ana,  cujo letreiro se parece na forma e não na grafia, com o dos campos de concentração, que destacavam que o trabalho liberta o homem. Abel também aceita um emprego de arquivista na mesma  clínica onde Vergérus trabalha e que funciona como um laboratório de experiência com cobaias humanas.
Neste ínterim, o inspetor Bauer chama Abel à delegacia e lhe mostra diversos  cadáveres no necrotério, de pessoas conhecidas do rapaz, uma das vítimas, Maria Stern deixa uma carta onde fala que estava morrendo de medo e sentido uma dor insuportável. Bauer informa que sete mortes misteriosas ocorreram em torno de Abel e pede que ele reconstitua suas ações desde 28 de outubro.
O trapezista diz que bebia desde a morte do irmão e ao  pensar que é suspeito, tenta fugir desesperadamente da delegacia, mas como o prédio é todo cercado e protegido por grades,  ele acaba contido  pelos policiais, a quem diz que está detido apenas por ser judeu. Porém, é solto logo depois, sem explicações, mas tendo de deixar nas mãos da policia os dólares, a única moeda válida num país contaminado por uma inflação galopante.
Na ocasião da sua soltura, o inspetor Bauer fala que está preocupado consigo mesmo e com uma catástrofe que pode chegar a qualquer momento, “pois temos um governo que não sabe aonde ir, onde nada se define direito a não ser  o medo.”  Na clinica onde trabalha em tempo integral e sem descanso, Manuela parece cada vez mais frágil  e debilitada.
O filme faz referências ao 6 de novembro, com jornais enegrecidos pelo medo, o governo impotente e em que os confrontos entre grupos políticos de direita e de esquerda parecem inevitáveis. Manuela procura um padre a quem se confessa alegando pensar que o suicídio do ex-marido foi sua culpa e o padre a perdoa dizendo que “nós vivemos distantes de Deus e por isso parece que ele não nos ouve”, e também pede perdão à mulher pela sua apatia e indifereça.
Diante da crise, um judeu que é proprietário de uma casa noturna fala de sair de Berlim e montar um cabaré e um bordel em Beirute. Neste momento o cabaré é invadido por uma tropa de nazistas, que quebra tudo em nome do povo e em protesto contra a perversão e decadência atribuída unilateralmente aos judeus.  O guarda pede ao empresário que tire os óculos, para não  quebrá-lo e bate diversas vezes com o rosto da vitima em um balcão do estabelecimento fazendo sangrar o seu nariz e a boca. Para completar a casa noturna é incendiada pelo grupo de baderneiros.
Em casa, Abel diz a Manuela que precisa estar bêbado para poder conseguir dormir e comenta que o pior nesta crise é que as pessoas estão sem futuro ou simplesmente perderam o bonde do futuro. Na clínica onde trabalha catalogando milhares de fichas, que transfere das pastas cinzas para amarelas, ele encontra um cientista que morou sete anos na Inglaterra e que se especializou em perversões eróticas. A clínica também realizava experimentos estranhos e não muito convencionais com seres humanos .
Abel e Manuela descobrem então que  foram vitimas de uma armadilha e que ambos estão trancafiados e prisioneiros. Abel mata um dos cientistas na sala em que trabalhava e que tinha os acessos protegidos por grades e cadeados, numa espécie de labirinto de difícil acesso.
Já no dia 7 de novembro, não havia mais leite em Berlim e o que é mais grave: muitas  lojas e mercearias estavam fechadas por falta de mercadorias, e por isso não havia sequer o que vender. O marco alemão deixou de existir como moeda e era usado aos quilos de notas para compra de ovos ou qualquer gênero alimentício. Manoela morre e Abel encontra Vergérus que lhe anuncia que algo novo está por nascer e lhe fala dos experimentos mortais com  drogas como Thanatoxina, que leva à loucura, à morte e ao suicídios,  fazendo com que uma mãe mate o filho que chora de forma incessante ou que um homem se suicide sem razões aparentes.  A morte do seu irmão Max estaria relacionada com estes experimentos.
Descrente de Hitler que não tinha em 1923 nem capacidade e nem método – embora chegasse ao poder alguns anos depois - , Vergérus se suicida em função da repressão da polícia com uma cápsula de cianureto e como todo o psicopata que se preza, fez questão de assistir a sua própria morte se olhando no espelho. Ele não chegou a ver a nova sociedade que duraria mil anos e se despedaçou em 45, com um custo de 50 milhões de mortos. Seria este o preço da insanidade? Mas qual o limite da loucura ?
PS – Abel conseguiu escapar dos policiais que o levavam para embarcar numa estação de trem. Em compensação está desaparecido até hoje, o seu paradeiro continua incerto e não sabido, coisa normal num período de exacerbação do medo e do nascimento do autoritarismo, pois o ovo da serpente é assim tem forma e conteúdo mesmo quando está sendo chocado. Shakespeare tinha razão.(Kleber Torres - do livro O princípio das Ideias)

Ficha técnica:
Titulo: O Ovo da Serpente (Das Schlangene)
Direção Ingmar Bergman
Roteiro Ingmar Bergman
Elenco : Liv Ullmann,  David Carradine, Gert Fröbe, Heinz Bennent, James Whitmore, Georg Hartmann, Fritz Strabner,  Hans Quest, Wolfgang Weiser, Walter Schmidinger e Grischa Huber
Editação:  Petra von Oelffen
Música : Rolf A. Wilhelm
Direção de arte: Werner Achmann
Fotografia:  Sven Nykvist
Produção: Dino de Laurentiis
Origem: Alemanha /  Estados Unidos
Ano: 1977

 Duração: 120 minutos

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