quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mishima - as quatro releituras de um filme





Para o espectador desavisado Mishima -  A Life in Four Chapters (Mishima – uma vida em quatro capítulos) , de Paul Schreder, pode parecer um filme monótono e de sabor extremamente oriental. Mas ele é em realidade uma supreprodução avalizada por George Lucas e Francis Coppola  e aparece como uma obra de arte que oferece quatro possibilidades de leituras distintas e sincrônicas sobre a  vida do escritor Yukio Mishima.
“A beleza é uma coisa terrível e espantosa. Terrível, porque indefinível, e não se pode defini-la porque Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas. Sou pouco instruído irmão, mas tenho pensado muito nestas coisas. Quantos mistérios acabrunham o homem. Ele os penetra e volta intacto...O Diabo é que sabe tudo, mas meu coração acha beleza até no que o espírito acha vergonhoso.” Essa citação de Destoiévsky, em Irmãos Karamazov, abre o livro Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima, lançado em 1949 e publicado no Brasil há cerca de três décadas.
Com esse romance Mishima pode abandonar a recém iniciada carreira de advogado para dedicar-se à literatura e ao mesmo tempo fazer da sua vida uma obra de arte. Mas escrever nunca satisfez integralmente ao inquieto escritor japonês, filho de família nobre, que criou um exército particular, para reviver as antigas tradições dos samurais e resgatar a cultura japonesa diante do que considerava invasão americana no período do pós guerra. Como artista multimídia para aquela época, ele gravou discos, fez filmes, praticou artes marciais e nunca hesitou em participar de debates para pregar as suas idéias e defender o nacionalismo nipônico.
O filme começa efetivamente em 25 de novembro de 1970,  quando Misihima acompanhado de quatro soldados do seu exército particular ocupara o comando das Forças Armadas do Japão, em Tokio, para fazer a partir da sala do estado-maior  uma proclamação ao exército e ao povo japonês, pelo retorno das tradições imperiais e jogando fora a sua constituição de influência nitidamente americana e ocidentalizada.
O enredo tem outros desdobramentos, pois de forma simultânea os roteristas Paul e Leonard Schrader mostram ao telespectador leituras e releituras não sincrônicas, que facilitam a compreensão do filme e o tornam uma aventura didática  palatável, com inserções de teatro e literatura ao lado da vida do escritor.
Assim, o filme pode ser visto e compreendido em quatro partes distintas que se somam e se fundem entre si: a beleza, a arte, a ação e finalmente a pena e a espada, delineando as preocupações de Mishima na vida, na arte e em termos ideológicos, num limite que transcende as barreiras de esquerda e de direita, para mostrar-se  como um conservador de tradições e costumes nipônicos cada vez mais ocidentalizados e descaracterizados. Ele divulgava o seu nacionalismo exacerbado e não escondia a sua vida como homossexual.
O filme  culmina com Mishima se suicidando seguindo o ritual sepukku – a prática do arakiri adotada pelos samurais – após a invasão do quartel general das forças japonesas, o que lhe confere um final trágico. No filme as quatro partes se fundem na formação de um todo harmônico, em que o espectador tem opções de comprender não apenas o enredo histórico, mas o seu contexto político, econômico, social e social, como uma obra de arte integrada.
O filme também traz recordações de Mishima sobre a sua infância e como um homem que podia lembrar as coisas desde o seu nascimento. Também retrata a sua vida familiar, seus contatos, a formação do exército particular que chegou a ter três mil homens, bem como sua participação em atos públicos, defendendo uma cultura japonesa tradicional e até certo ponto radical, desde que voltada para as suas raízes.
Num outro plano de leitura o filme mostra o ambiente teatral e cenarizado, com cenas de peças e de seus romances principais, como a sequência do gago  com uma bela jovem japonesa e a contradição nítida da feiúra da sua fala com a beleza da mulher jovem  e desnuda. A hesitação da fala, em metáfora, se revela na hesitação da mão do gago.
Sem dúvida alguma essa soma de leituras e releituras do filme permitem a compreensão da vida e da obra de um homem que era segundo Henry Miller,  o que encontrou o segredo dos colecionadores de relíquias: “ele matou a literatura matando a si próprio  e ao indivíduo, para reunir-se à humanidade inteira na sua morte”.
O filme tem a assinatura de fotografia de John Bailey e apresenta no seu elenco Ken Ogata, Kenji Sawada e Yasosuke Bando, sob direção de Paul Scharader, que com audácia e competência, pintou de forma inovadora os contornos de uma vida, que saltou da existência física para a literatura e se transforma numa obra prima também no cinema. Até que ponto a vida imita a arte ou vice-versa? (Kleber Torres)


Ficha técnica:
Direção:  Paul Schrader
Elenco : Ken Ogata, Kenji Sawada, Yasosuke Bando e Toshiyuki Nagashima
Produção: Tom Luddy, Francis Ford Coppola, George Lucas, Leonard Schrader, Mataichiro Yamamoto
Roteiro: Paul Schrader, Leonard Schrader e Chieko Schrader
Música: Philip Glass

Duração: 120 min

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