sábado, 19 de setembro de 2020

O que faz um Dom Quixote diante do prenúncio do fim do mundo

 


 

Diferentemente da história de Pedro Malasartes no seu enfrentamento com a morte, mas com um jetinho tipicamente brasileiro,  a compreensão do filme sueco Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo), escrito e dirigido por Ingmar Bergman, a partir de uma peça teatral do mesmo autor, envolve uma grande metáfora escatológica e existencial.O filme tem como referências a peste negra que assolou a Europa na Idade Média, matando parte da população e com uma brutalidade comparável aos rastros da Segunda Guerra Mundial, encerrada onze anos antes do filme rodado em 1956, e que dizimou mais de 80 milhões de vidas, nos induzindo a indagações e reflexões sobre a vida, a morte, o amor e a própria existência de Deus diante de um mundo desigual, injusto e ilógico.

Ambientado historicamente num período  apocalíptico medieval, o Sétimo Selo nos coloca não só diante às aflições do mundo, como também no universo do clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, ao reunir os caminhos de um  cavaleiro que retornou das cruzadas, mas faz questionamentos sobre o sagrado e a finitude da vida; enquanto o seu fiel escudeiro, um homem simples e rude, com uma visão pragmática de um mundo que não precisa de respostas prontas e acabadas, por isso mesmo  enfrenta sem medo a própria morte, que seria um desdobramento racional de uma  vida  simplesmente  transitória.

O filme tem ainda como referência o Apocalipse, com a história um livro selado com sete selos e em que  a abertura de cada um destes deles implica num malefício sobre a humanidade. O enredo cita o capítulo oitavo, no versículo primeiro,  “quando enfim, abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no céu durante cerca de meia hora”. E tudo começa numa praia deserta, quando um cavaleiro cruzado Antonius Block (Max von Sydow) aparece deitado e um tabuleiro de xadrez estilizado é invadido pelas ondas derrubando as peças na areia.

Neste cenário, o cavaleiro tem o seu primeiro encontro com a morte (Bengt Ekerot), dizendo-lhe que o tem acompanhado por muito tempo e como resposta, sabendo da proximidade do seu fim, ele a desafia para uma partida de xadrez. Na aposta, caso saia vitorioso, a velha senhora o deixaria em paz.

No jogo, a morte fica com as pretas, faz um lance inicial e depois, segue seu caminho acompanhando  um outro cavaleiro condenado à vida eterna. Ao mesmo tempo Block continua  seu trajeto com o escudeiro Jöns (Gunnar Björnstrand), que ao encontrar um morto em fase de esqueletização, observa como quem conhece o humor negro, que o mesmo sabe onde por certo  fica a taverna mais próxima.

Na sequência seguinte, o ator Joff (Nils Poppe), integrante  de uma trupe de teatro mambembe, participa de uma apresentação numa pequena aldeia medieval e constata, pelas reações do público,  que o povo do lugar parece que não gosta de arte. Nesse ínterim,  cavaleiro e seu escudeiro  chegam também à vila onde num tempo de guerras e epidemias um artesão pinta uma estranha dança da morte.

No caso do cavaleiro Block, que retornava de uma cruzada, ele voltava para casa com o coração vazio, como o mesmo espelho que reflete o seu rosto: “minha própria imagem me causa repulsa e me dá medo”, diz numa divagação existencial, como um homem priosioneiro das suas fantasias e fobias. Ainda como homem, ele quer o conhecimento e que Deus lhe estenda a mão, mostrando a sua face e falando com ele.

Block joga xadrez com a morte, sabendo que ela tem táticas inteligentes e ele sonha poder vencê-la com uma jogada com apoio de  bispos e cavalos, bem como buscando uma saída para o vazio existencial que o afeta e circunda. No contraponto do cavaleiro, o seu escudeiro Jöns  tem uma outra visão do mundo bebe, vai à taverna , despreza a morte e zomba da divindade, deixando em segundo plano as questões metafísicas.

Ao mesmo tempo cidade é invadida por uma espécie de procissão pedindo clemência para conter o avanço da epidemia e a população antes indiferente ao teatro mambembe, para e se ajoelha contrita diante dos devotos. Um dos participantes da procissão comenta que “Deus está nos castigando em silêncio”.

Um outro personagem diz que vê a morte se aproximando, enquanto um terceiro, retruca apocalítico  dizendo: “vocês não entendem seus idiotas, pois todos vão morrer”, e o grupo continua sua caminhada carregando também uma pesada cruz de madeira.

Jöns assiste a tudo indiferente, comentado que: “eles  acham que as pessoas acreditam nisso” , enquanto um homem na taberna lamenta que a peste está em toda parte e as pessoas morrendo como moscas : “Não consigo vender nada”, diz um dos homens, enquanto a mulher que servia aos fregueses da taverna arremata o diálogo dizendo que é chegado o juízo final”È o fim do mundo e que ninguém ousa dizer”.

O cavaleiro Block acredita que as pessoas se preocupam demais, e lembra da sua mulher, para quem fazia versos e não quer esquecer o momento de paz que encontrou momentaneamente ao lado do ator Joff e sua mulher Mia (Bibi Anderson), com quem divide morangos com leite num papo descontraído.  

Em seguida,  ele reencontra com a morte que o esperava e pergunta se ele vai escoltar a família de Jof, o que inclui a mulher e o filho pequeno, enquanto o ferreiro da vila procura a mulher que fugira com um dos atores da trupe, embrenhando-se pela floresta,

Consolado pelo cavaleiro Jöns, para quem o amor é a pior das pestes, mas a única que não mata a ninguém, o ferreiro Ake Fridell parece choroso e sonha com a volta da companheira, mesmo informado de que o amor é luxuria,  intrigas, traições e tolices, mas, se tudo é imperfeito neste mundo, o amor seria perfeito na sua imperfeição.

O ferreiro encontra a mulher em companhia do amante na floresta e mesmo assim, tenta com sucesso a reconciliação. Para evitar uma agressão possível do ferreiro, o dublê de ator e amante simula uma morte cenográfica teatral se suicidando com um golpe de faca no peito, mas quando fica só e sobe numa arvore para dormir é surpeendido com a chegada da morte inevitável, que serra o tronco da árvore provocando a sua queda e um final trágico.

Na floresta, o grupo formado pelo cavaleiro, escudeiro e atores mambembes encontra um grupo de soldados que levam presa uma feiticeira condenada à morte e em cujos olhos Block vê muito medo. Ela acaba queimada numa fogueira no meio da mata.

Num novo encontro com a morte para a continuação do jogo, Block é questionado sobre quando vai parar de fazer perguntas. E ele responde: “Nunca”. A morte, para quem nada e ninguém lhe escapa,  também ceifa a vida de um doente de peste que gritava que não queria morrer. Block convida a morte para terminar a disputa e o seu encontro com a velha senhora é percebido por Joff.

A morte anuncia o xeque mate, que marcaria o final da partida, mas o deixa anunciando um novo encontro em que o levaria e aos seus amigos, enquanto Block questiona sobre os seus segredos recônditos e essência. A morte o segue e começa uma tempestade violenta e com muitos raios, no momento em que o cavaleiro e seus acompanhantes reencontram a sua mulher, a quem diz que está cansado.

A morte pergunta se ele se arrependeu de ter ido para a guerra e Block responde : “nunca me arrependo de nada”. Em essência, o Sétimo Selo não tem respostas e nem certezas, mesmo quando  todos os aspectos da fé são questionados, pois não há uma distinção definitiva entre o bem e mal e nem sobre o certo e o errado, enquanto  homens aparecem pregando, cantando, teatralizando e punindo em nome de coisas metafísicas ou não.

Em tempo, um  personagem transversal que sempre permeia as ações para falar em nome de Deus e da religiosidade,  é o mesmo ladrão que roubava jóias dos mortos e que liderava a procissão de flagelados. Ele também teria sido a pessoa que  convenceu o cavaleiro a partir para a cruzada, dez anos antes da sua volta para a morte definitiva, evidenciando que há mais coisas entre Deus, o Diabo e a morte mesmo fora da terra do sol glauberiano e distante das terras tropicais de Pedro Malasartes,  com todas suas artes e manhas. (Kleber Torres)

 

 

Ficha técnica

Título : Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo)

Direção e Roteiro : Ingmar Bergman

Elenco  : Max Von Sidow, Gunnar Björnstrand, Bengt Ekerot, Nils Poppe, Bibi Anderson, Inga Landgré, Ake Fridell, Inga Gill, Erik Strandmark, Bertil Anderberg e Gunnel Lindblom

Cinematografista : Gunnar Fischer

Música : Erik Nordgren

1956

Suécia

210 minutos

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