sábado, 26 de setembro de 2020

Um farol iluminado por narrativas superpostas e violência


 

Rodado em preto e branco, com lentes de 35 milímetros, o filme O Farol (The Lighthouse), dirigido pelo cineasta Robert Eggers, foi lançado no Festival de Cannes de 2019 e bem recebido pela crítica. No filme, considerado de terror psicológico, o diretor que estreou com A Bruxa, em 2015, considerado uma das melhores obras cinematográficas da década passada, nos oferece uma série de narrativas complexas e superposta para a relação conflituosa entre dois homens com a missão de operar um farol oceânico numa ilha remota e açoitada por fortes tempestades, que a deixam isolada.

A obra também pode ser uma metáfora da luta pelo poder e até de uma relação homossexual mal resolvida, o que fica implícito em alguns diálogos. No filme,  dois homens do mar entre os quais veterano Thomas Wake (Willem Dafoe) e o novato Ephraim Winslow (Robert Pattinson) são encarregados de zelar pela manutenção e operação de um farol em uma ilha distante.

O isolamento aparece como eixo detonador do conflito entre os dois personagens que entram num confronto aberto, num ritmo crescente e desgastante, acentuado pelas diferenças  hierárquicas e pelo próprio tédio das rotinas cotidianas, colocando em xeque a relação entre os dois personagens com suas idiossincrasias, ou seja, os componentes particulares das respectivas personalidades de cada um dos contendores.

A tensão começa quando Wake define o controle da operação do farol, dizendo ao novato para que cuide das suas obrigações, envolvendo os serviços gerais de limpeza e manutenção, porque “a luz é minha”. E durante a noite, ele se trancava e ficava nu na parte superior da torre do farol até o início da manhã seguinte.  É dele também o frequente brinde antes das bebedeiras: “se o anjo da morte com enorme desalento fizer do oceano nosso leito, Deus ouvindo as ondas rolantes salvará as nossas almas suplicantes,” um moto incorporado ao dicionário do seu antagonista.

 

É dele também a assertiva de que o tédio transforma os homens em vilões e por isso o único remédio é a bebida. A narrativa ganha densidade com a sua explicação de que o último faroleiro foi embora, depois, informando que ele morreu depois de enlouquecer. Ephraim Winslow  suspeita que o faroleiro tenha matado o seu antecessor depois de encontrar um corpo em decomposição ao limpar o sistema de esgotos do farol.

 

O ritmo do filme é lento, pois está centrado majoritariamente nos diálogos e disputas entre os dois personagens com discussões frequentes e recorrentes, acentuadas por impropérios. O roteiro inclui ainda o aparecimento de uma sereia (Valeria Karäman) e poucos coadjuvantes, transmitindo ao espectador e em preto e branco, a mesma angustia e frustrações vivenciadas pelo jovem faroleiro, com a sua rotina das tarefas braçais, agravadas pela precariedade do prédio onde funciona o farol, com uma cozinha e espaço para refeições, além do pequeno alojamento com camas, mas com acesso privativo de Wake, que pode significar despertar, levantar  ou acordar, para a torre,

 

O conflito faz ainda aflorar os segredos e dramas dos personagens. Ele pode embutir uma relação homossexual, que se manifesta no nível do diáologo entre os personagens, além de revelar que Winslow seria na verdade Thomas Howard, que o matara assumindo a identidade da vítima e era também um onanista contumaz. Assim, nada melhor a para um fugitivo da polícia do que trabalhar num lugar remoto, sem polícia e longe dos rigores da lei, um caminho aberto para a impunidade. O filme também induz a imaginar Winslow/Howard seja um psicopata sempre pronto a fazer uma nova vítima.

 

Em compensação,  fica para o espectador outra hipótese também sugestiva: a de que Wake teria matado o seu colega faroleiro e tentaria naturalmente, eliminar o mais novo ajudante, de quem faz uma avaliação negativa da sua produtividade e competência, sugerindo em anotações o cancelamento do pagamento do seu salário. O Farol  induz ainda a um questionamento  sobre a sanidade e loucura do personagem, que tem o seu mundo particular na torre de iluminação do farol um espaço restrito aos seus auxiliares. Mas, o que ele realmente faz  a cada noite durante o seu turno isolado de trabalho na torre do farol?

 

Em que pese o conflito entre os  personagens dispares, os dois jantam juntos a luz de velas, dançam, bebem com frequência – até mesmo o querosene dos geradores -, enfrentam tempestades e as incertezas de cada dia, como a não chegada do barco de suprimentos em decorrência de tempestades no mar. Wake ensina ao aprendiz que matar gaivotas dá azar enquanto o seu antagonista insinua que não aceitou o emprego para ser uma dona de casa e destaca que como qualquer um trabalhador, quer se estabelecer e ganhar o seu salário.

 

Wake quer saber o que trouxe  Winsolow/Howard até o farol e diz que o mar é o único cenário que quer para si mesmo: “sou o faroleiro e casado com este farol”, diz com uma ponta de orgulho. Ele também ensina ao auxiliar que dá azar matar gaivotas, pois elas guardam as almas dos marinheiros que se entregaram  ao criador.

 

Uma das sequências relevantes do filme é a sua descrição do escorbuto – um tema abordado por Luiz Vaz de Camões em Os Lusíadas-, doença que se manifesta pela  fraqueza e cansaço inicial do paciente, mas que em seu estado mais grave afeta as gengivas e faz o doente perder os dentes por falta de vitimina C.

 

O conflito entre os dois personagens se agudiza no decorrer no filme e Wake faz ver a Winslow/Howartd, de que “esta rocha – o local onde estão – é uma invenção da sua cabeça” ou seja, que nada é real e que o farol seria um sonho, uma abstração ou mesmo algo sobrenatural.

 

O roteiro assinado conjuntamente  pelo diretor e seu irmão Max Eggers, ganha sabor e intensidade com os diálogos em inglês arcaico, uma concessão histórica ao tempo referenciado no enredo, com uso do jargão próprio dos marinheiros, o que dá um tom clássico para o filme como obra preparada para o terror e em que a ficção se contrapõe com a realidade.

 

Em O Farol é rompido o tênue fio invisível que separa a sanidade da loucura, mas trazendo no seu bojo a morte banalizada pelo mal ou por qualquer fator meramente acidental como uma queda abrupta, num filme também com um gosto de coisas e fatos sobrenaturais, que se manifesta nos sonhos dos personagens e às vezes nos seus atos insanos. Neste sentido, nada é o que parece ser(Kleber Torres).

 

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Ficha técnica

Título : O Farol (The Lighthouse)

Direção : Robert Eggers

Roteiro : Robert e Max Eggers

Elenco : Robert Pattinson,  Willliam Dafoe, Valeria Karäman, Longan Hawkes e  Shaun Clarke

Cinematografista : Jarin Blaschke

Música : Mark Korven

109 minutos

Estados Unidos

2019

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