domingo, 29 de novembro de 2020

Os múltiplos limites entre a insanidade e a morte



 

O instigante documentário "Louco Não. Doido",  dirigido e produzido pelo ganhador do Oscar Alex Gibney, exibido pela HBO e por streaming na HBO GO,  explora as raízes da violência a partir do trabalho da  psiquiatra Dorothy Otnow Lewis, que dedicou sua vida ao estudo de assassinos, e os motivos que os levam a cometer crimes hediondos e até  em série. Ela tratou jovens desajustados e casos de grande repercussão no país, inclusive de Theodore Bundy, o Ted, considerado um dos maiores seriais killers da história americana e do mundo, um jovem simpático, bem falante, aparentemente sem problemas e que matou mais de 30 mulheres e ainda guardava seus crânios como troféus.

O filme, que foi exibido na seleção para o Festival de Veneza 2020, reúne um conjunto de entrevistas e casos acompanhados pela psicanalista, que é contra a pena de morte para pessoas com doença mental, embora defenda o isolamento social dos assassinos em série para proteção das pessoas e da sociedade.

O roteiro foi montado como se fosse uma história de detetive, mostrando as ações da  psiquiatra Lewis ao longo da vida e o seu trabalho de pesquisa para conhecer os assassinos a partir da observação comportamental entrando nos seus corações  e da mentes. O documentário reúne inclusive entrevistas com presos gravadas no corredor da morte e a avaliação das experiências formativas e disfunções neurológicas de assassinos famosos.

Dorothy Lewis pesquisou a predisposição à psicose dos pacientes e a sua correlação com algum tipo de disfunção cerebral e homicídios. Em uma pesquisa com 55 jovens internados numa instituição psiquiátrica, foi constatado que 21 deles cometeram homicídio. O fato comum em todos os casos de homicidas era o registro de disfunção cerebral e um ponto em comum é que todos eles foram vítimas também de abuso sexual na infância.

No documentário aparece o caso de Mary Moore,  que tinha múltiplas personalidades e também  era psicótica. Dorothy Lewis constatou que ela foi abusada na infância e também se manifestava como Billy, uma personalidade masculina, ao cometer crimes e abusos sexuais. Em suas pesquisas a psiquiatra identificou  numa clinica crianças com disfunção cerebral casos de transtornos dissociativos  de identidade, indicando que personalidades alternativas violentas emergem e são mecanismos de crianças torturadas para se proteger e como instrumento de compensação.

A psiquiatra entrevistou ainda  crianças com transtorno dissociativo de identidade, como foi o caso de N. que também se identificava também como Amanda, e mantinha um registro das suas atividades diárias e uma profusão de desenhos> A pesquisa revelou os conflitos de personalidade antagônicas e dispares numa mesma pessoa.

Outro caso incluído no documentário foi o de Arthur Schawcross, um pacato pai de família e que trabalhava num café, preso pela morte violenta de 11 mulheres. O fato é que nem a  mulher com quem vivia  acreditava que ele fosse um assassino em  série, pois ele a aconselhava a ficar em casa e não sair porque tinha um assassino  solta na cidade onde moravam e a tratava com carinho.

Nas entrevistas com a psiquiatra ele  deu indicativos de lesões no cerebrais, o que foi comprovado com exames de imagens e  dizia que matava  influenciado por  Bessie, a sua  mãe, uma mulher dominadora e que o maltratava na infância. Ele conta que após cometer um crime via luzes e relaxava de tal modo, que dormia no carro, ao lado do corpo das vítimas, que descartava jogando à margem das rodovias.

Transtorno dissociativo de identidade  também foi o caso de Max, um outro  homicida culto, inteligente e que era agredido frequentemente na infância. Ele também se apresentava com Kalkin, dizendo que era um avatar, pessoa que fazia tudo pelo bem. A psiquiatra contava com a colaboração de Catherine Yeager, uma psicóloga clínica que participava de pesquisas e fazia o acompanhamento dos casos dos pacientes estudados.

A psiquiatra inclusive assessorou Martin Scorsese na produção do  filme Cabo do Medo, que conta a história de um psicopata, inclusive  colocando Robert de Niro para conversar com o Max, que tinha manifestações de múltiplas personalidades  e que  elogiou o desempenho do ator em Taxi Drive. No documentário também são colocados debates sobre a questão da pena de morte, um deles com a participação do então senador Joe  Biden, ainda jovem e hoje, eleito presidente dos Estados Unidos.

Os dois filhos da psiquiatra falam da convivência familiar, destacam sua dedicação ao trabalho, participação e contribuição à pesquisa inclusive na área acadêmica. O mais velho  auxilia a mãe, digitando os seus textos que são escritos sempre à mão sobre os transtornos dissociativos de identidade. Dorothy Lewys também tinha um hobby: o desenho

Um caso complexo pesquisado pela doutora Lewis foi de Johnny Frank Garrett, que aos 17 anos  matou  e estuprou uma freira. Ele confessou o crime, mas depois se recusou a assinar a confissão e foi diagnosticado com esquizofrênico, com danos cerebrais. O homem que acabou condenado à morte também se apresentava como Aaron Shockman (um nome sugestivo de violência) ou como Bárbara, o seu caso foi levado a um Comitê de Clemência, que decidiu  por 17 votos a 1 a favor da sua execução. No dia da sua execução, cuja suspensão foi pedida até pelo papa,  grupos a favor e contra  a pena de morte fizeram  manifestações em frente do presídio, no Texas.

O defensor público  Richard Burr dá  um depoimento destacando o papel pioneiro da psicanalista, dizendo que a justiça deve ver atenuantes e também agravantes para cada crime. Destacou que Dorotrhy Lewis defende um  tratamento diferenciado da justiça para pessoas com  diagnóstico personalidades múltiplas, evitando sua condenação à morte, o que não significa a sua soltura e nem absolvição por crimes, salientando que nenhuma nação civilizada executou doentes mentais.

A psiquiatra também acompanhou o caso de David, que tinha personalidade múltipla apresentando-se ora como Juan, Lee ou Bobby.David, que  na infância foi queimado e torturado pelo pai e pela mãe, tinha marcas dos maus tratos no peito e nas costas, ele chorava ao contar o drama da sua juventude e os caminhos que o levaram ao crime.

Um  caso a parte no filme, foi o Sam Jones, que não era um psicopata assassino, mas vendia sua força de  trabalho como o carrasco tendo participado da execução de 19 pessoas. Ele disse a psiquiatra, a quem deu entrevista tomando seis cervejas,  que não sentia nada quando matava os condenados e nem tinha remorsos,  mas pintava em acrílico depois de cada execução.  Seus quadros com caveiras estilizadas e cores fortes, revelam  a humanidade do carrasco que recebia em média 25 a 50 dólares por execução.

Sem dúvida,  caso mais famoso pesquisado pela psiquiatra foi de Ted Bundy, que matou mais de 30 mulheres, a quem  decapitava e ainda guardava os crânios  como troféu. A psiquiatra conta que errou no seu diagnostico e  ele acreditava que ele simplesmente já nasceu mau, pois não apresentava problemas neurológicos grave, embora  aparentasse ser uma personalidade psicopática. Ele acabou  executado em 1989 e  ao ser preso, também foram encontradas na sua casa revistas sobre sexo e pornografia, a quem acusava de ser o motivo do seu descaminho.

No histórico de Bundy, a avó teve depressão e chegou a ser internada em um manicômio. Ele era filho ilegítimo e foi criado como filho pelo avô um homem agressivo e violento, que influenciou negativamente na sua formação. O fato é que desde os três anos Ted Bundy manifestava atração por facas e chegou a ser diagnosticado pela psiquiatra Dorothy Lewis como um caso de transtorno bipolar.

O fato é que ao ser condenado à morte, Bundy ainda tentou recorrer da sentença, mas ele tinha plena consciência dos seus crimes e do que lhe iria acontecer com a aplicação da pena capital. Depois de uma conversa de quatro horas e meia com Dorothy Lewis, antes da sua execução, Ted Bandy confessou que teve um caso com a sua irma e ainda disse a ela que não saísse  de casa, porque tinha um assassino a solta matando mulheres parecidas com ela.

O caso de Bundy, em termos psiquiátricos,  só foi esclarecido depois da sua morte quando a psicóloga encontrou em poder de sua família cartas redigidas por ele, com a mesma letra mas com assinaturas diferentes ora como Ted Bundy, como Sam ( o nome do avô) e até como Sambo, indicativo positivo de transtorno dissociativo de identidade, o mesmo problema de outro réu serial killer condenado à morte e que deixou a sua torta de sobremesa, para comer depois da execução.(Kleber Torres)

 

Ficha técnica:

Título : Louco não, doido

Diretor e roteiro: Alex Gibney

Cinematografista : Bem Bloodwell

Música : Will Bates

2020

Estados Unidos

1h50minutos

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