Considerado um filme essencialmente nietzscheano
e uma reflexão sobre a condição humana, Zelig (1983), cujo nome em ídiche significa
abençoado ou protegido, é um falso documentário dirigido e escrito por Woody
Allen, tendo como cenário as décadas de
1920 e 30, para mostrar a vida Leonard Zelig, um homem desinteressante, mas que
tem a capacidade de transformar sua aparência na das pessoas que o cercam
ajustando-se ao ambiente e às circunstâncias do seu entorno. O documentário é registrado
em preto e branco, enquanto os depoimentos recentes são coloridos e fazem um contraponto
com a história ficcional do personagem.
Em termos metafóricos, Zelig é uma espécie
de camaleão humano criado por Woody Allen para contar a parábola de homem que é a soma
de todos, mas ao mesmo tempo nenhum, sofrendo os mesmos dissabores dos atores
sociais que viveram em todos os tempos e lugares. O filme assume uma faceta hiperealista
ao usar cenas de documentários a ponto
de fazer com que o espectador acredite que o personagem efetivamente existiu,
sendo retratado na forma de uma comédia e de brincadeiras criativas, num
documentário similar à proposta de O Assaltante Bem Trapalhão (Take the Money and
Run), de 1969, do mesmo cineasta.
O multifacetado Zelig interpretado
pelo próprio Woody Allen é visto
inicialmente numa festa, pelo escritor F. Scott Fitzgerald –um
personagem real que viveu intensamente entre os anos 20 e 40-, o qual percebe
que, ao mesmo tempo em que ele circula entre os convidados como Leon Zelmann, louvando as elites num
sotaque refinado e esnobe. Em seguida, ele se mistura aos criados na cozinha, onde
aparece vociferando enfurecidamente contra os "gatos gordos" num
forte sotaque proletário e com uma entonação marxista e anárquica.
Por suas características, ele rapidamente
ganha fama em todo o mundo como um camaleão humano, sendo tratado como uma celebridade pelos jornais e ganhando destaque
no noticiário das rádios, bem como aparecendo no mundo da música e do cinema,
influenciando a moda e o lançamento de produtos como bonecos e outros objetos
de consumo.
No filme são registrados depoimentos
de pessoas de carne o osso como a escritora e critica de arte americana Susan
Sontag, que o considera Zelig como um fenômeno do século 20 e o compara como
celebridade a Charles Lindbergh, um pioneiro da aviação estadunidense e ficou
famoso por ter feito o primeiro voo solitário transatlântico sem escalas em
avião, em 1927. Já o critico literário e social Irving Howe, de origem judaica,
falou da estranheza do personagem e o
escritor Saul Bellow declarou que Zelig era divertido e mexeu com as pessoas do
seu tempo.
A produção envolveu um criterioso
trabalho de montagem e trucagem que consumiu três anos de trabalho, servindo
para reescrever momentos da história entre os anos 20 e a eclosão do nazismo na
década de 30 do século passado, mostrando as vezes Zelig como uma figura tímida
e outras como um personagem histriônico e
um mero bobo da corte, que também aparece como uma figura circunspecta a
depender do momento e da cena. A história é subvertida pelo humor, como
alternativa diante de uma realidade por vezes absurda.
Allen utilizou-se de imagens reais de
cinejornais de época, e inseriu a si mesmo e outros atores com o auxílio da
técnica do chroma key. Para dar uma aparência autêntica às suas cenas, ele e o
diretor de fotografia Gordon Willis utilizaram diversas técnicas, como
localizar algumas das câmeras e lentes utilizadas originalmente durante os
períodos mostrados no filme, e até mesmo simulando danos aos negativos, como
arranhões e rugas, para fazer com que o produto final parecesse realmente
antigo. O personagem aparece depois na Florida.
É nesse contexto que entra em cena
a médica Eudora Fletcher (Mia Farrow), uma
psicanalista que quer ajudar Zelig como vítima de um estranho distúrbio não
diagnosticado ao ser internado em seu hospital. Através do uso da hipnose, ela descobre que Zelig não tem problemas
fisiológicos, mas sim psicológicos, pois anseia tão fortemente por aprovação das
pessoas que se altera fisicamente, na esperança de se adequar e atender assim
às expectativas dos que o cercam
melhorando o seu relacionamento em relação a um mundo adverso, hostil e nem
sempre racional.
Usando uma série de técnicas
psicanalíticas e drogas experimentais, bem como recorrendo aos recursos da
anamnese e até a gravação em filme das sessões de terapia,
ela consegue de certa forma uma reversão dos sintomas, não sem gerar algumas complicações colaterais para o
paciente. Mesmo assim, colhe bons resultados e ela eleva a auto-estima de Zelig,
cujo pai ao morrer ensinou a vida é um pesadelo de sofrimento sem sentido, mas
não soluciona o seu drama pessoal.
O filme embute uma sátira aos diagnósticos
dos analistas como estratégia para se autoafirmarem com o
seu jargão perante os pacientes e ao público leigo, mas revela ao mesmo tempo
os problemas da falta de compreensão e de amor, bem como a necessidade de
aceitação das pessoas para o convívio social, o que ocorre na família, no
trabalho, na escola, o que nos remete e Friedrich Nietzsche para quem nós nos sentimos bem em meio à
natureza porque ela não nos julga.
Nesse ínterim, sua Irmã o tira do
hospital e o leva para casa, o que culmina numa tragédia familiar quando ela se
envolve com um toureiro e acaba assassinada num complicado triangulo amoroso, enquanto
a médica insiste e recorre até à justiça para tentar continuar o tratamento
interrompido do paciente. Zelig, cujo segredo do sucesso é a não existência e
vive como uma não pessoa, continua sua
escalada no hall da fama e é apontado como um fenômeno do século XX, mudando
sempre de aparência, sendo tema de um filme sobre a sua vida, rendendo
dividendos ao consumo com a comercialização de bonecos, canetas, games, músicas
e até com a propagação da dança do camaleão uma variante do charleston.
Depois da morte da irmã, Zelig, que
fora esquecido pela mídia saturada de distração, reaparece num incidente no Vaticano
e retoma o tratamento, para identificar se ele é psicótico ou neurótico. Ao
assumir o papel de médico na retomada do tratamento, ele fala de paranóia delirante
e Eudora Fletcher desenvolve uma estratégia com uma espécie de choque de
realidade, quando ele acaba admitindo o obvio: “não sou ninguém, não sou nada”.
Zelig fala do seu drama existencial e
lembra de ter ido na juventude a uma
sinagoga para saber do rabino o sentido da vida, quando é informado em hebraico
língua que não compreendia. O rabino se propõe assim a ensinar a língua dos
seus antepassados mediante uma módica contribuição de 600 dólares. Na estratégia
de resgatar a personalidade perdida do paciente, ela consegue que ele comece a
falar verdades que nem pensaria, dizendo,
por exemplo, que odeia a vida no campo, que a médica é uma péssima cozinheira,
se define como democrata e acaba sendo avaliado por uma junta médica que atesta
a sua cura depois de um debate sobre as condições do tempo.
Com a repercussão do caso Eudora, que
se apaixona por Zelig, ganha fama e se torna também objeto de homenagens de
cientistas, sendo recebida na mansão William Randolph Hearst, frequentada por artistas
de cinema, músicos e cantores. Devido à cobertura feita pela mídia sobre o
caso, tanto o paciente quanto a doutora tornam-se parte da cultura popular de
seu tempo e ele admite que era um camaleão e não mais o é.
A fama, contudo, só trouxe problemas
ao casal e a mesma sociedade que fez de
Zelig um herói, acaba por destruí-lo, quando ele admite que mudou. Ele é
acusado de bigamia por uma mulher e identificado como o pai de gêmeos abandonados
por uma outra, também é responsabilizado
erros médicos quando se passava por um profissional de saúde e por imperícia até
como pintor de parede, até a historia da sua vida que havia vendido para um estúdio
cinematográfico acaba jogada na lata do lixo e a empresa cobra o seu dinheiro
de volta.
Mesmo assumindo os erros e pedindo desculpas,
Zelig é chamado de criminoso e é considerado uma má influência moral, mas
continua recebendo o apoio da mulher e médica. Como conseqüência dos problemas
enfrentados, ele tem uma recaída e se transforma em grego num restaurante de
comidas típicas da Grécia, e depois desaparece evanescendo nas brumas do tempo.
Eudora Fletcher inicia então uma busca
incansável por ele e pede ajuda até da polícia na tentativa de achar Zelig. Ele
foi visto como mariachi, no México, o que não foi confirmado e acaba sendo
identificado num jornal cinematográfico onde é visto ao lado de Hitler e simpatizantes
nazistas na Alemanha. A médica viaja para a Europa e o encontra num grande
comício, onde Zelig ao vê-la atrapalha um discurso do líder máximo do nazismo e
acaba perseguido pela SS, na fuga ele rouba um avião e bate o recorde na travessia
do Atlântico, voando de cabeça para baixo e voltando ao noticiário.
Zelig é recebido com festa nos Estados
Unidos e a fuga audaciosa lhe rende aplausos e elogios do governo americano. O
fato interessante é que sua adaptabilidade
às coisas, a sua doença, acabou sendo a sua salvação e como tudo tem um
final feliz, ele e a médica se casam, vivendo felizes para sempre. Zelig lamenta
no final da vida, que o único mal de morrer é que não havia terminado de ler
Moby Dick, de Herman Melville (Kleber Torres)
Ficha técnica
Direção - Woody Allen
Roteiro - Woody Allen
Elenco - Woody Allen, Mia Farrow,
Patrick Horgan (narrator), Susan Sontag, Saul Bellow e Irving Wowe
Música - Dick Hyman
Fotografia - Gordon Willis
Estados Unidos
1983