domingo, 10 de novembro de 2024
A dupla face de um dilema político, social e existencial
Mesmo sem uma política nacional de segurança pública definida com a integração de ações entre União, Estados e Municípios, o governo brasileiro reagiu com rapidez através do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski ao condenar a venda de armas de fogo logo após um incidente recente em que um atirador num surto psicótico matou o pai, o irmão, dois políciais militares e feriu outras oito pessoas, inclusive familiares, em Nova Hamburgo (RS), além de abater a tiros dois drones da polícia. Ele era esquizofrênico, mas tinha registro de Colecionador, Atirador e Caçador para porte de armas (CAC), segundo informações da Polícia Civil e Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que investigaram o caso.
O autor dos disparos, identificado como Edson Fernando Crippa, 45 anos, foi morto dentro de casa onde morava com a família após um tiroteio de nove horas contra policiais, que tentaram – sem sucesso - uma negociação que não se tornou possível. No imóvel, a polícia encontrou várias armas, muitas delas de grosso calibre e mais de 300 munições, o que serviu para reforçar o discurso do governo contra a venda de armas e questionar à instituição do porte de arma para pessoas com registro de CAC no país. A história nada tem a ver com o filme 400 contra 1(2010), de Caco Souza, sobre a origem do Comando Vermelho, em que um faccionado enfrenta as forças de segurança.
Neste diapasão, como em Itabuna no ano passado um outro homem num surto psicótico matou a facadas um interno em um albergue de idosos e doentes mentais, seria de bom alvitre abolir também a venda e a fabricação de facas, que também são instrumentos letais e oferecem risco à população mesmo sem necessidade burocrática de registro específico junto aos organismos de segurança.
O fato é que o debate sobre a venda de armas e a sua letalidade tem sido um tema recorrente nos Estados Unidos e também no Brasil, onde ocorrerm por ano uma média de 50 mil assassinatos, uma das maiores taxas de homicídio do mundo, representando uma média de 22,8 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. Cabe ainda observar que as facções do crime organizado operam a todo o gás com ações em todo o território nacional, exibindo armas de grosso calibre, sem necessidade de registro ou qualquer outra formalização e realizando atentados cinematográficos como o que resultou na morte do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach, envolvido com uma facção do crime organizado, executado no aeroporto de Guarulhos, na capital paulista, numa área de intensa movimentação de veículos e pessoas.
O caso do crime do Rio Grande do Sul e que ganhou repercussão nacional, envolve porém duas faces do problema e que precisam de uma atenção específica de governo. Ninguém discute que a polícia aparentemente enxuga gelo numa guerra desarticulada contra o crime organizado, uma vez que não há uma integração de ações entre o governo federal, estados e municípios, enquanto o crime está cada vez mais organizado, estruturado e usando até mesmo os sofisticados recursos da tecnologia digital para aplicação de golpes virtuais e mesmo monitoramento ou vigilância pelo sistema 24 x 7 das áreas onde atuam e operam as gangs criminosas.
Mas, se por um lado o governo se mostrou preocupado com o comércio de armas e munições, cujo controle caberia ao exército, polícia federal e em teoria do Ministério da Justiça, ganhando apoio de alguns setores da socidade civil organizada, por outro lado, nenhuma voz se levantou com relação à situação precária e falta de assistência aos esquizofrênicos no Brasil. Este é um grave problema de ordem política, psicológica e social, que se agudizou com o fechamento dos manicômios no país, os quais, teoricamente, deveriam ser substituídos por serviços de atendimento terapêutico, seja através de centros comunitários, núcleos de convivência e mesmo por unidades de tratamento ambulatorial, que na prática, considerada o critério da verdade, inexistem ou funcionam precariamente na maioria das cidades brasileiras.
Coincidentemente, o trágico incidente do Rio Grande do Sul ocorreu quando estava em exibição pelo Prime Video a série Irmãos Esquizofrênicos (Six Schizophrenic Brothers), um documentário de quatro capítulos, sobre uma família norte-americana em que seis dos 12 irmãos, filhos de Don e Mimi Galvin - uma família católica, de origem irlandesa e de classe média alta- , que manifestaram sintomas de esquizofrênia na transição para a idade adulta. A série explora a evolução das relações e das lutas internas dos personagens principais frente à esquizofrenia.
O primeiro capítulo mostra a família de 10 meninos e duas meninas, entre os quais Peter, Donald, Brian, Matthew e Jim, que já manifestavam os primeiros sinais de que algo estava errado ainda na juventude a partir do relacionamento entre si e com os irmãos menores. A esquizofrenia de um dos irmãos mais velhos começa a se manifestar com comportamentos incomuns e paranóicos, levando a conflitos e agressões aos irmãos mais jovens, contribuindo para desmoronamento da estrutra familiar.
No grupo, Peter, desmembra um cachorro na banheira da casa da família. Donald nos primeiros surtos, quebrava todas as janelas da casa, ele também abusou física e sexualmente de um dos irmãos, mas também foi abusado por um padre que frequentava a casa da família Galvin. Jim, manifestava os seus problemas mentais, sendo cruel com os irmãos mais jovens e Brian, já adulto, num surto psicótico, matou tragicamente à namorada e praticou suicídio logo em seguida. Um dos irmãos não esquizofrênico considera que os problemas fizeram desabar o mundo do que seria uma família de classe média até então teoricamente perfeita e estruturada.
O segundo capítulo aprofunda o debate sobre as dificuldades do tratamento e a luta constante contra o estigma da doença, que não era aceita pela família, a qual procurava esconder o comportamento bizarro dos filhos evitando possíveis internações. Os pais optavam por um atendimento ambulatórial e mostrando aos viznhos um núcleo familiar perfeito, cujo patriarca era um oficial graduado da aeronáutica e tinha inclusive doutorado.
Mas os problemas se tornam mais intensos e visíveis no decorrer do tempo, resultando em conflitos e situações constrangedoras para a família, que mesmo assim procurava evitar a internação dos filhos, um dos quais o psiquiatra considerou perigoso e recomendou uma internação que nunca chegou a ocorrer. O capítulo também revela o impacto emocional da doença, da medicação que perdia efeito ao longo do tempo e dos tratamentos psiquiátricos ambulatoriais com suporte da Academia da Força Aérea, o que contribui para um desgaste mental e emocional para a desestruturação todo o núcleo familiar, o que se concretizou após as mortes do pai e da mãe dos 12 irmãos.
O terceiro capítulo tem como foco o ponto de inflexão na dinâmica familiar, quando os pais percebem a dimensão do problema, que é permanente e requer apoio contínuo. O foco recai sobre a reconstrução das relações familiares, e os irmãos passam a confrontar seus próprios medos e limitações. As terapias em grupo e as conversas nem sempre amigáveis e tensas se tornam uma tentativa de estabelecer um equilíbrio na convivência entre irmãos e lidar com os traumas resultantes de uma tragédia familiar.
O último capítulo da série traz uma sensação de esperança para os irmãos doentes e para os próprios pacientes com a enfermidade em todo o mundo. A convivência com a esquizofrenia, embora ainda desafiadora, se torna mais compreendida com a identificação pelos pesquisadorees de um gene ligado à doença em alguns membros da família, após o sequenciamento do genoma dos Galvin. A pesquisa também permite a definição de instrumentos para avaliar como esse gene recessivo pode ser afetado inclusive pelo ambiente externo e como eventos traumáticos podem desencadear a esquizofrenia.
Com isso, os irmãos e seus familiares – muitos dos seus descendentes sofrem de ansiedade por medo da esquiszofrenia – temendo uma doença que afeta o pensamento e as sensações, assim, aprendem a desenvolver uma nova rotina, aceitando a condição como parte da vida e mantendo-se alerta para possíveis desvios de comportamento.
Peter, por exemplo, se considera “curado” , mas continua tomando regularmente os médicamentos recomendados pelos médicos que o acompanham. No passado, ele foi detido por agressão a dois policiais, mas diz que nunca foi preso, está limpo e hoje trabalha como paramédico. Ele se identifica com São Pedro, um homem santo e que foi pregado na cruz. Para o seu médico, ele é um paciente que está estabilizado.
No seu histórico pessoal, ele permaneceu estável por dez anos, até 2002, quando apresentou problemas e em 2004, em função da resistência adquirida aos remédios que utilizava, Peter passou a ser sumbetido a uma terapia eletroconvulsiva (ECT), com uso de eletrochoque e, após cada sessão, diz que fica como um homem novo em folha. Também seu irmão Matthew não se considera doente e vive como ele numa comunidade terapêutica.
Hoje, Donald, Peter e Matthew viovem em casas de repouso, com permanente acompanhamento médico. Os pais, antes de morrer, pediram aos demais irmãos que não os abandonasse, mas eles não tem conseguido e a família se dividiu ao longo dos últimos anos. Em março de 2022, um grupo de irmãos se reuniu em Colorado Springs para uma avaliação da situação do núcleo familiar fragmentado e da situação dos irmãos ainda vivos, com esquisofrenis.
A série termina com uma mensagem de esperança mostrando que, mesmo nas situações mais difíceis, é possível encontrar alguma paz e equilíbrio, com uma saída viável através da ciência e do avanço na produção de medicamentos ou desenvolvimento da terapias para o atendimento à esquizofrênicos, o que se complementaria com a adoção de políticas públicas adequadas. Já a violência brasileira parece não ter cura, enquanto a própria sabedoria popular na terra do Alienista, de Machado de Assis, nos ensina que de médico e louco cada um de nós tem um pouco e alguns, partecem ter um pouquinho a mais. (Kleber Torres)
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
O humor e loucura no hiato entre as culturas primitivas e a civilização
Ao narrar a história de Xi, interpretado pelo nativo N!Xav - um membro da tribo San, bosquímanos que vivem no deserto do Kalahari, na África do Sul -, cuja vida muda radicalmente quando encontra uma garrafa de Coca-Cola que cai casualmente de um avião e milagrosamente, não se quebra, o filme "Os Deuses Devem Estar Loucos"(1980), levanta uma série de reflexões sobre o impacto sobre a chegada da modernidade em sociedades primitivas e a absurda complexidade da vida civilizada e urbana, com seus conflitos sociais, culturais, étnicos, políticos e ideológicos. Dirigido por Jamie Uys, que explora uma série de ‘gags’ nas diversas sequências, o filme é em essência uma comédia satírica, que usa o choque cultural entre selvagens e civilizados no mundo moderno para explorar questões profundas, mas com bom humor e romantismo, sobre a civilização, o consumismo, a anomia e a alienação tecnológica.
Construído como uma espécie de documentário, o filme parece, numa primeira vista, uma comédia leve e ingênua, com situações que beiram o absurdo, com Xi – integrante de uma tribo de bosquímanos nômades, que sobrevivem pacificamente mesmo sem leis e sem chefes, da caça e da coleta de furtos numa região desértica e com poucas reservas de água - tentando devolver a maldita garrafa aos deuses indo para isso se preciso ao fim do mundo. Nesta viagem, ele acaba se deparando com um confronto entre guerrilheiros que lutam contra um governo autocrático ou o cientista atrapalhado Andrew Steyn (Marius Weyers) envolvido em uma série de desventuras cômicas com a sua paixão Kate Thompson (Sandra Prinsloo).
O humor do filme é ácido e profundamente crítico, faz rir e, ao mesmo tempo, expõe as contradições do mundo civilizado, onde objetos insignificantes, como uma garrafa de vidro branco, que parece água, mas é duro, podem transformar a vida de uma comunidade pacífica de selvagens em um caos de rivalidades e confusão, gerando sentimentos de posse e conflitos para pessoas que consideravam que Deus colocou as coisas na terra simplesmente para serem usadas. A garrafa, que para os San é uma novidade inusitada, traz para eles os males da posse e do desejo para pessoas sem o senso de propriedade, que conviviam apenas com árvores, mato e animais, refletindo ao mesmo tempo uma crítica mordaz à sociedade de consumo e às relações econômicas ou políticas que conduz aos conflitos inevitáveis entre grupos antagônicos.
O filme desenha um contraste claro entre a pureza da vida no deserto do Kalahari e o caos do mundo urbano, marcado pela violência, ganância, desordem e conflitos pelo poder político e econômico. Para Xi e seu povo, a vida é simples, centrada na sobrevivência e na harmonia com a natureza.
Já a sociedade moderna, que fica a 60 milhas das comunidades aborígenes, é retratada principalmente através das peripécias de Steyn e Kate Thompson, que é caótica e cheia de complicações como as relações interpessoais no mundo civilizado. Uys parece questionar a verdadeira evolução da civilização ocidental em relação a um povo sem calendário e para quem todos os dias são domingo ou quem sabe, segundas ou terças feiras, sugerindo que, apesar de toda a tecnologia e aparente sofisticação dos civilizados, o homem moderno perdeu a simplicidade e a conexão com o essencial, com a própria natureza e a essência fundamental das coisas.
A perspectiva de Xi é tratada com dignidade e respeito, e o filme evita cair em um olhar condescendente para com a sua cultura, para um homem que queria saber porque os deuses lhe mandaram aquele artefato, o qual poderia ter mil e uma utilidades, inclusive como instrumento de sopro a partir do seu gargalo ou servindo como um brinquedo para crianças da tribo. Vale observar que garrafa de Coca-Cola é um símbolo do consumo de massa e da globalização na sociedade ocidental e torna-se no filme uma metáfora poderosa da invasão cultural, trazendo à tona um problema: a destruição de modos de vida tradicionais pelo materialismo e objetos de consumo mesmo sem o líquido do refrigerante.
Na comunidade dos bosquímanos, a garrafa faz surgir a dipsuta, o ódio e a violência na disputa da sua posse e, ao ser jogada para cima numa primeira devolução tentada por XI, o artefato retornou e caiu sobre sua filha que acabou desacordada quando o objeto caiu sobre a sua cabeça. Desiludido, ele decide enterrar a garrafa, e naquele dia, cessou a conversa e o riso no pé da fogueira da comunidade nativa. Mas, uma hiena farejou o sangue e desenterrou o objeto maligno,que acabou encontrado por outra criança da tribo, gerando uma nova disputa na tribo.
Estes problemas fizeram Xi tomar a decisão de levar a coisa miligna se preciso até o fim do mundo. Ao mesmo termpo ocorre um atentado terrorista no território onde o selvagem teria de transitar, e Xi tem seu primeiro encontreo com o mundo civilizado, ao se deparar com um animal barulhento – um carro -, que deixa como uma serpente, duas marcas de pneus em paralelo como rastro infinito no chão.
"Os Deuses Devem Estar Loucos" também levanta preocupações antropológicas sobre a forma como retrata os personagens indígenas. Xi se choca ao se defrontar com Kate Thompson, uma loura, a quem considera a coisa mais feia dos mundo, com seus cabelos esbranquiçados. A participação do nativo como protagonista e a maneira como ele e sua tribo são mostrados pode ser vista como uma romantização exagerada da vida primitiva dos aborígenes e uma redução dos bosquímanos a caricaturas exóticas. Xi achava, a princípio, que os brancos eram deuses.
De certa forma, o filme tende a reforçar estereótipos e bias, mostrando em contrapartida o homem urbano como um trapalhão desajeitado, que muitas vezes pesquisa sobre coisas sem interesse prático ou objetivo e o indígena é retratato como um ser ingênuo, reforçando dualismos simplistas sobre civilização e barbárie. Um exemplo é quando Xi mata uma cabra e acaba preso, por não compreender que o animal era propriedade de terceiros, sendo solto mediante um acordo.
A narrativa também pode ser criticada por não dar voz própria aos bosquímanos, com seu estilo narrativo que os coloca no contexto observados antropológicos ao invés de agentes centrais de suas próprias histórias ou das suas vidas. "Os Deuses Devem Estar Loucos" é frequentemente visto como um produto do período, com seu olhar colonial e ocidental sobre as culturas nativas. No entanto, sua capacidade de provocar discussões sobre o consumismo, a globalização e os efeitos da modernização sobre culturas tradicionais ainda ressoa até os dias de hoje, emergindo como uma obra divertida, mas provocativa e que nos convida a uma reflexão sobre o que é e os conceitos da civilização com todas as suas incongruências.
Com inteligência e através do humor, o filme convida o público a questionar os valores que moldam a sociedade moderna e a refletir sobre o impacto que o progresso com os seus artefatos pode ter sobre culturas que vivem isoladas e em harmonia com o meio ambiente. "Os Deuses Devem Estar Loucos" continua sendo relevante por sua crítica aos conflitos da vida moderna e ao imperialismo cultural gerando forte impacto ambiental que nos conduziu a guerras, à emissão de gases poluentes e gera os riscos de mudanças climáticas que parecem estar ocorrendo em escala global, mostrando ainda que a palavra-chave é sustentabilidade.(Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título Original: The Gods Must Be Crazy / Os Deuses Devem Estar Loucos
Direção e Roteiro: Jamie Uys
Elenco Principal: N!xau, Marius Weyers, Sandra Prinsloo, Louw Verwey, Michael Thys, Nick de Jager
Música : John Boshoff
Ano de Lançamento: 1980
País: África do Sul, Botsuana
Gênero: Comédia, Aventura
Duração: 109 minutos
Idioma: Africâner, Inglês, Nama
sábado, 19 de outubro de 2024
Dersu Uzala: uma lição de sustentabilidade e respeito à natureza
Considerada uma obra-prima sobre a relação sustentável do homem com a natureza, mesmo em condições climáticas adversas nas florestas e geladas estepes siberianas, o filme “Dersu Uzala” marca um ponto de inflexão na carreira do cineasta japonês Akira Kurosawa, que rodou o seu primeiro filme fora do Japão através de uma colaboração com o estúdio Mosfilm, na antiga União Soviética. O filme é uma adaptação das memórias do explorador russo Vladimir Arsenyev, interpretado por Yuri Solomin um oficial e topógrafo do exército czarista, que comandava uma expedição exploradora na Sibéria e relata sua amizade com o nômade Dersu Uzala, interpretado por Maksim Munzuk, um caçador solitário das estepes siberianas, que tinha o conhecimento e o domínio da vida na natureza, como forma de sobrevivência e de coexistência para a preservação da flora e a fauna.
Como resultado emerge uma obra cinematógrafica que se destaca por sua profundidade emocional na relação entre pessoas, bem como pela beleza visual das cenas e pela profunda reflexão sobre a relação entre o ser humano e a natureza, o que resultou na conquista do prêmio maior do festival de Moscou (1975) e do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (1976). Tudo começa em 1902, quando ao encontrar por acaso numa trilha a Derzu Uzala – um caçador itinerante que vivia na floresta sozinho, depois de perder a mulher os filhos para varíola -, o capitão Arsenyev o convida para guiar a expedição e tem como resposta um lacônico: “eu preciso pensar”.
Depois de aceitar a missão, o novo guia começa a observar o grupo de soldados da expedição que o ridicularizam pela sua simplicidade e aparente inocência, observando que eles olham, mas não veem o que acontece ao seu redor. Ao constatar pegadas na floresta por onde passava a expedição, ele alertou sobre a presença de chineses na área e previu a existência de um abrigo nas proximidades, o que acabou confirmado algum tempo depois.
Para Derzu Uzala, o sol é um companheiro importante e se ele morrer, todos também irão morrer. Ele também fala dos seus deuses anímicos e das forças poderosas da natureza como a água, o vento e o fogo, que precisam ser respeitados. Ele critica também ao desperdício de munição dos soldados da expedição que treinavam tiro ao alvo com uma péssima pontaria, mas ao receber uma arma para atirar, prefere mirar e acertar na corda, para aproveitar a garrafa vazia usada como alvo e que para ele teria utilidade como cantil na floresta.
Akira Kurosawa, conhecido por seu domínio do cinema em preto e branco, mostrou a sua genialidade ao explorar com o requinte o uso cores num filme colorido, revelando os cenários das vastas e selvagens paisagens da Sibéria capturadas com uma atenção aos detalhes e exalando uma beleza quase poética nas imagens. As tomadas de florestas densas, vastas planícies e montanhas geladas são tratadas com a mesma reverência que Kurosawa deu às paisagens humanas em filmes como Ran – uma adaptção oriental da história do Rei Lear, de Shakespeare - e Os Sete Samurais, transformando a natureza em um personagem poderoso, contrastando com a insignificância do homem frente a ela e revelando sua imponência e imprevisibilidade.
Outra sequência importante na primeira parte do filme, que é dividido em dois blocos temporais entre 1902 e 1907. O primeiro de 1902, quando participa da expedição exploratória do exército tzarista e numa sequência, ele e o capitão se perdem numa planície depois que um vendaval apagou os seus rastros na areia. Como anoitecia e as temperaturas na estepe caem a níveis que colocam em risco a sobreviência humana, Dersu Uzala improvisa um abrigo com a vegetação que consegue cortar antes do anoitecer, salvando a sua vida e do seu chefe.
Nesse incidente, ele fala ao capitão sobre a insignificância do homem diante das forças da natureza e recusa o convite de ir com o mesmo para a cidade, onde não tem uma casa e nem referenciais sobre a vida urbana. Ao invés de receber o salário em dinheiro, ele prefere uma doação em munição e alimentos.
Cinco anos depois, Vladmir Arsenyev volta a Sibéria chefiando uma outra expedição no período da primavera de 1907, quando começa o degelo, gerando enchentes nos rios, com lama em profusão nas trilhas e um calor intenso. Por acaso, o grupo reencontra com Dersu Uzala que volta a servir de guia para os levantamentos topográficos da região. O caçador condena a caça predatória por homens que procuravam apenas recolher as peles e dentes, deixando para trás a carcaça apodrecida de animais. Ele também condena bandidos que assaltavam e asssinavam as vítimas de sequestros na área rural, mas começa a apresentar sinais de perda da acuidade visual deixando-o impedido de ver com nitidez animais, coisas e objetos circundantes, inviabilizando sua vida como caçador.
Com estas limitações agravadas pela velhice, o caçador aceita o convite de Arsenyev que o recebe em sua casa junto com a família. Como um estranho no ninho, Derzu Uzala não se adequa a viver num quarto mesmo com janela e não pode dormir na rua ou nos jardins da cidade onde seria preso por vadiagem. Ele também questiona o viver urbano, criticando a compra de água nas mãos de um aguadeiro para abastecer a casa do seu protetor. Ao ver a compra de lenha para aquecer o imóvel, ele pega um machado e derruba uma árvore num jardim da cidade, mas acaba preso, sendo liberado com intervenção do capitão, de quem despede para voltar a viver na floresta, depois de receber uma arma nova, o que principia a sua morte de forma trágica.
O ponto central da narrativa do filme é a relação entre dois homens de mundos radicalmente diferentes: Arsenyev, um militar russo, de origem urbana e Dersu Uzala, o nômade que vivia em harmonia com a natureza retirando da floresta o essencial à sua sobrevivência. A conexão entre esses personagens é construída lentamente, com um respeito mútuo que transcende as barreiras e às limitações culturais. Já a simplicidade e sabedoria de Dersu Uzala contrastam com a formação e a rígida disciplina militar de Arsenyev, e ao longo do filme, essa amizade se amplia e revela uma visão profundamente humanista de um diretor considerado um dos mais influentes da história do cinema e que nos legou 30 filmes muitos deles antológicos.
Dersu, com sua humildade e conhecimentos da vida selvagem, parece quase como um xamã, compreendendo os ritmos da natureza de maneira que os personagens "civilizados" nunca poderiam. Ele é um símbolo da pureza do homem não corrompido pela industrialização e pelas convenções sociais, mas também um retrato melancólico de um modo de vida que está desaparecendo com o avanço da civilização, o que gerou os conflitos anômicos e a inadequação que acabaram resultando na sua morte.
Uma das maiores virtudes de Dersu Uzala, cujo roteiro foi assinado por Kurosawa e Yori Nagibin a partir de uma biografia de Vladmir Arsenyev, é propor reflexão sobre o conflito entre a vida moderna e o ambiente natural. Dersu, sendo um filho da floresta, vive em harmonia com seu entorno, mas sua forma de vida começa a entrar em choque com o mundo moderno representado pelos exploradores russos e chineses gerando uma forte tensao.
O filme, que é contemplativo e tem um ritmo lento, explora questões filosóficas sobre o isolamento, a passagem do tempo e o impacto da modernidade na alma humana. Kurosawa constrói uma reflexão ponderada sobre a impermanência das coisas, em que o próprio Dersu representa o espírito indomável que, com o tempo, é tragicamente esmagado pela inevitabilidade das mudanças inexoráveis, mas que nos colocam hoje diante do impacto da ação predatória do homem com efeitos no meio ambiente o que se reflete no aquecimento global e em mudanças climáticas que preocupam e afetam a todos nós.(Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título Original: Дерсу Узала (Dersu Uzala)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa e Yuri Nagibin (baseado nas memórias do explorador Vladimir Arsenyev)
Elenco Principal: Maksim Munzuk, Yury Solomin, Svetlana Danilchenko, Aleksandr Pyatkov, Vladmir Kremena, Dimitri Korskokov, Mikail Bychkov, Sümönkul Tschokmoro e Igor Sykra
Música: Isaak Shvarts
Fotografia: Asakazu Nakai e Yuriy Gantman
Produção: Akira Kurosawa (Japão) e Mosfilm (União Soviética)
Gênero: Drama / Aventura / Biografia
Duração: 144 minutos
Lançamento: 1975
segunda-feira, 26 de agosto de 2024
As várias faces conspiratórias de um guerreiro na eterna luta contra a verdade
Um dos canônes do jornalismo ensina que não se briga com a notícia. Este é o tema do filme Alex Jones: uma guerra contra a verdade (The true x Alex Jones), narrando a história do apresentador e influenciador digital condenado a pagar uma indenização de US$ 1 bilhão por seus comentários negando o massacre na escola Sandy Hook, em Connecticut, ocorrido em 2012, onde 26 pessoas, incluindo 20 crianças e seis professores foram executadas a tiros. Jones, considerado um dos principais teoricos conservacionistas da América, afirmava que o massacre era uma farsa montada pelo governo americano para inibir a venda de armas nos Estados Unidos e mostrava as famílias das vítimas – que não existiam – eram apenas atores de uma grande farsa cospiratória montada pelo sistema.
As alegações que deixaram 25% dos americanos, o que representa um contingente de 75 milhões de pessoas, duvidando dos crimes, resultou em assédio e ameaças inclusive de morte às famílias das vítimas, que decidiram processá-lo por difamação. Em vários julgamentos, alguns deles à revelia, jurados condenaram Alex Jones e sua empresa, a Infowars, que faturava támbém com a venda de vitaminas importadas da China, a pagar uma indenização que ultrapassa a cifra bilionária por danos compensatórios e punitivos. O objetivo da punição seria a de responsabilizar e desestimular futuras desinformações de natureza semelhante, inibindo a produção de fake news que hoje pululam airosas nas redes sociais de todo o mundo.
O filme, dirigido por Dan Reed, mostra como a justiça pode ser aplicada para responsabilizar figuras públicas que espalham mentiras com impacto na vida cotidiana das pessoas. Na sua defesa, Alex Jones alegava que lutava contra a mídia corporativa e uma grande conspiração internacional envolvendo paranóia e poder. Ele juntamente com a sua empresa, Infowars, entraram com pedidos de falência após as sentenças, complicando assim o processo de pagamento das indenizações às vítimas de Sandy Hook.
Com uma narrativa instigante e intensa o documentário consegue manter o espectador envolvido ao explorar o impacto da ação Alex Jones na mídia e na sociedade, através da apresentação de vídeos antigos sobre a chacina, entrevistas e trechos de programas com comentários de Alex Jones contribuindo para criar uma narrativa dinâmica que reflete o caos e a intensidade que ele representa com as suas narrativas até certo ponto convincentes.
O filme questiona o papel do apresentador na disseminação de desinformação e como suas ações impactaram negativamente o debate público sobre o incidente, além de levantar questões importantes sobre a responsabilidade social da mídia na difusão da informação e a linha tênue que separa a liberdade de expressão e discurso de ódio. O clima reflete também aspectos da divisão ideológica que hoje divide a sociedade americana e de outros países como o Brasil.
Como contraponto embora o documentário apresente pontos relevantes da questão das teorias conspiratórias, ele falha em explorar de forma mais profunda as motivações de Alex Jones e o fenômeno da desinformação e da manipulação da informações. Isso acaba deixando a análise de certa forma superficial, sem descer em profundide às raizes políticas do processso para fornecer uma compreensão mais completa das origens do populismo midiático que é explorado igualmente por demagogos de direita e de esquerda, com o suporte das redes sociais.
Há também em alguns momentos do filme, quem veja que o documentário cai na mesma armadilha que critica, utilizando técnicas de edição cinematográfica e trilhas sonoras para amplificar o drama das vítimas e das famílias de maneira desnecessária, o que fornece argumentos em favor de Alex Jones useiro e vezeiro dos recursos sensacionalistas para conquistar audiência dos seus programas na rede de rádio Genesis Communications Network, pela WWCR ou através da internet.
O fato é que além dos processos de difamação pelos quais foi condenado a pagar indenizações bilionárias, através de várias ações movidas por diferentes famílias das vítimas de Sandy Hook, no Texas e Connecticut, Alex Jones responde a ações por assédio sexual – caso rersolvido através de um acordo com uma ex-funcinária da Inforwars -e a processos por violações de direitos autorais ao usar indevidamente músicas no seu programa.
Aainda durante a pandemia de Covid-19, ele foi alvo de várias ações judiciais e regulatórias por promover curas falsas e desacreditar as medidas de saúde pública, ao vender produtos alegando que eles podiam curar ou prevenir a Covid-19, uma prática que foi amplamente criticada e que levou a multas e ordens para suspensão das vendas, o que nem sempre respeitou. Como um reicidente que se presa, Jones também poderá ser condenado em processos relacionados ao ataque por grupos radicais que apoiava ao Capitólio em janeiro de 2021, o que é outra história. A lição maior ainda é a do draumaturgo grego Ésquilo, que viveu há 2,5 mil anos, observando que numa guerra a primeira vítima é a verdade. (Kleber Torres)
Ficha técnica :
Título : Alex Jones: Uma Guerra contra a Verdade (The Truth vs Alex Jones)
Direção : Dan Reed
Gênero : Documentário / Policial
Ano Lançamento : 2024
País : Estados Unidos
Duração : 121 minutos
domingo, 4 de agosto de 2024
A arte acima das tragédias pessoais, da guerra e da própria fé
Um dos precursores do existencialismo, Ortega y Gasset considerava que o homem é ele e as suas circunstâncias. O filme Quando os sinos tocam (2024), de Joshua Enck, retrata poeticamente o drama do consagrado vate americano Henry Wadsworth Longfellow(1807-1882) interpretado pelo ator Stephen Atherholt, autor de The Song of Hiawatha, A psalm of life, Paul Revere’s Ride, Voices of the night e Hyperion, uma novela romãntica de suas viagens à Europa, onde perdeu a primeira mulher após um aborto, que para de escrever durante a Guerra de Secessão (1861-1865), depois de atingido por uma tragédia familiar, o que colocou em xeque a sua fé e mata a sua inspiração.
Embora pouco conhecido no Brasil, Henry Wadsworth Longfellow foi um influente poeta e educador americano do século XIX, que marcou posição no combate à escravidão. Ele também se tornou uma celebridade influente nos meios políticos e ficou conhecido como profeta da nação, por suas obras líricas e narrativas, além de ter traduzido A Divina Comédia, um clássico de Dante Alighieri. Longfellow era um autor tão popular que num só dia, vendeu num lançamento em Londres, mais de 10 mil exemplares de um dos seus livros, que se tornou um best seller fora dos Estados Unidos.
O seu drama pessoal começa com a morte da sua mulher Fanny Longfellow (Rachel Dau Hughes), que o chamava de “meu poeta” e a quem Henry considerava “minha poesia”, uma das suas críticas e a quem considerava como uma espécie de musa inspiradora, morta num incêndio que ele não consegue controlar. A sua depressão se agrava em função da Guerra de Secessão (1861-1865), que custou mais de um milhão de vidas de americanos envolvidos numa guerra fraticida entre o sul e o norte dos Estados Unidos, após a libertação dos escravos.
O conflito atinge a família do poeta, cujo filho Charley Longfellow (Jonathan Blair) se alista e acaba gravemente ferido, mesmo sendo protegido por oficiais superiores que lhe davam tarefas fora das linhas de combate. Deprimido o poeta questiona a sua fé em Deus e na arte ao declarar: “se Deus me deu uma voz de poeta, porquê ele tirou a poesia de mim?” Para ele o problema é que quando o tempo tem cheiro de pólvora, a literatura e por extensão a arte perdem o sentido, o que também ocorre nos dias atuais.
O recomeço fica por conta da volta do filho pródigo, que se recupera em casa dos graves ferimentos numa emboscada e que lhe descreve poeticamente o que viu quando ferido e abrigado numa igreja metralhada pelo exército sulista. A torre da igreja caira depois de um bombardeio e o sino, mesmo no chão, ainda tocava. A retomar a sua arte, o poeta também reconstruiu com os filhos os laços familiares e a sua fé expressa no trecho de um dos seus poemas: “o amanhecer está próximo, a noite é estrelada. O amor é eterno!Deus permanece Deus, e sua fé não faltará; Cristo é eterno”! O filme busca a ligação possível entre o cinema e a poesia, que pode estar em toda parte, inclusive no deserto e até descansando no vazio das idéias ou esperando sempre no espaço em branco de uma folha qualquer de papel ou de uma tela.(Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título : I heard the bells (Quando os sinos tocam)
Direção : Joshua Enck
Roteiro : Joshua Enck e Jeff Bender
Elenco: Stephen Atherholt, Rachel Day Hughes, Jonathan Blair, Ava Munn e Zach Heeker
Direção de Fotografia : Steve Buckwalter
Música : Chad Marriot
Estados Unidos
115 minutos
2024
quarta-feira, 24 de julho de 2024
A última sessão de uma tragédia anunciada
A ascensão meteórica e a queda dramática de uma startup, o que acabou virando caso de polícia e na investigação de fraudes contábeis e operacionais, é o tema do documentário MoviePass, Movie Crash, dirigido por Muta’Ali Muhammad e exibido no Brasil através de streaming pela HBO, com o título MoviePass: a última sessão, sobre um serviço de assinatura para ingressos de cinema através do pagamento de um valor mensal de assinatura. O filme foi lançado este ano, reúne depoimentos de executivos da empresa, técnicos, pequenos investidores que acabaram lesados pela falência do negócio e usuários do serviço, alguns dos quais ainda guardam o cartão da MoviePass de acesso aos cinemas.
O filme mostra a empresa que mais cresceu na história da mídia com preços de ações em ascensão explosiva e captando milhões de usuários. Fundada e dirigida por dois empresários negros Stacy Pikes e Hammed Watt, a MoviePass acabou parando mas mãos de Mitch Lowe e Ted Fransworth, um empreendedor de projetos multiplos, que controlava o fundo HMNY, que afastaram os idealizadores do projeto e sucatearam a empresa canibalizando-a através da promoão eventos multmídia, anunciando investimentos na produção de filmes e gastos superfluos que sangraram a empresa em US$ 1 milhão de dólares por dia. Resultado a empresa perdeu mais de US$ 230 milhões num curto espaço de tempo, o equivalente a mais de R$ 1 bilhão e se transformou numa massa falida, que acabou sendo readquirida por Stacy Pikes num leilão judicial e agora investe na sua recuperação com a mesma marca.
Tudo começou em 2011 com uma pequena empresa que começou a crescer e não atraia investimentos, porque os seus gestores eram negros. No mercado americano as mulheres e as minorias só têm acesso a 3% dos investmentos de risco. No filme Mich Lowe, que entra na empresa em 2016, se apresenta como os dos participantes da criação da Netflix. Em realidade, ele apenas fornecia discos e filmes na fase inicial da empresa, mas procurava mostrar sua relação com o cinema, lembrando que na infância era levado de carro pela tia para assistir filmes como Psicose, de Alfred Hitchcock, escondido debaixo de uma coberta para não pagar ingressos.
A história do MoviePass mostra como o crescimento rápido – comparado metaforicamente como da construção de um avião em pleno voo - e não sustentável pode levar a falhas catastróficas resultando em prejuízos para a empresa, parceiros de negócios, trabalhadores e usuários do serviço idealizado para operar com um custo médio mensal de US$ 39,95 por usuário que poderia assistir quantos filmes quisesse. A taxa mensal chegou a ter um custo de US$ 10 por mês, o que permitiu a expansão vertiginosa do número de assinantes, 100 mil dos quais conseguidos 48 horas após o início da campanha, isso quando a empresa tinha apenas 50 mil cartões em estoque, o que forçou medidas emergenciais para a compra do material necessário inclusive com a ajuda de carros fortes para o seu transporte.
O documentário também revela como a ganância e as decisões mal orientadas dos executivos Mitch Lowe e Ted Fransworth podem destruir uma empresa promissora e com potencial de expansão. A história também enfatiza a necessidade de uma gestão ética e transparente não só no campo governamental, como também no mundo corporativo. Uma auditoria em 2018 revelou que a MoviePass registrava uma perda de US$ 150 milhões, derrubando os preços das suas ações que tinham subido de US$ 2 para US$ 38.
A história da MP oferece lições são valiosas para empreendedores e investidores, bem como para qualquer pessoa interessada em startups, negócios e a indústria do entretenimento.A ideia do MoviePass era inovadora, mas a empresa para operar tinha de estabeecer acordos com as distribuidoras e produtoras como a AMC, que num primeiro momento se negou a participar da parceria com a MP e depois acabou aceitando um acordo, que foi rompido posteriormente. O projeto, considerado bem sucedido, parecia que poderia mudar a indústria do entretenimento e gerou um aumento em 112% no registro de ida da população aos cinemas nos EUA.
MoviePass, Movie Crash mostrou como a startup tentou negociar com as grandes redes de cinema e como essas negociações muitas vezes foram complicadas e tensas, o que mostra os desafios de tentar inovar em uma indústria estabelecida e na área de entretenimento. O fato é que o modelo de negócios do MoviePass, oferecendo ingressos ilimitados por uma taxa mensal muito baixa, realmente parecia insustentável, porque a conta não fechava e os custos operacionais excediam as receitas, uma vez que a empresa estava comercializando ingressos a um preço muito inferior ao custo real, o que inevitavelmente levou a déficits crescentes agravados pelas grandes perdas financeiras com eventos de marketing e gastos supérfluos.
Mitch Lowe afastou os dois criadores do negócio, mas não fez aportes significativos de capital para o projeto. Em 2017, Ted Farnsworth trouxe através do fundo HMNY recursos para a empresa, o que atraiu os investidores, provocando uma elevação de 146% nas suas ações e atingindo um milhão de usuários ativos, um dos quais foi ao cinema 428 vezes, mediante o pagamento mensal de uma tarifa básica de US$ 10 por mês. Para o usuário, o problema do custo era do sistema, e não dele.
Nas manobras de sucateamento da MoviePass, os novos gestores impediram que os fundadores da empresa pudsessem vender as suas ações com valor estimado de US$ 80 milhões. Com a perda da qualidade do serviço, bloqueio de cartões e falta de investimentos em infraestrutura – a MP investiu mais de um milhão de dólares num evento de mídia – quando estava com problemas na expansão das sua rede de computadores para melhor atender aos usuários, com um custo muito menor.
Com a crise instaurada e sem recursos, Lowe, que foi viver no México, transferiu o comando da empresa para Kalid Ithum que entrou no negócio pela janela, assumindo inicialmente a vice-presidência de eventos e um escritório especial da MP em Los Angeles. Nesse interim, Ted Fransworth, que tinha negócios até com a vidente La Toya Jackson, descansava e curtia viagens de lazer com amigos num moderno iate pelo Caribe. Já a MoviePass e o HMNY tiveram falências decretadas.
Em 2020, a FTC (Comissão Federal de Comércio) e o FBI iniciaram uma investigação sobre as duas empresas falidas por fraude no bloqueio de clientes – sua principal fonte de renda – e pelos prejuizos aos pequenos investidores. Mick Lowe e Ted Fransworth fizeram um cordo com a FTC e o seu processo continua a tramitar na justia americana. Como a corda arrebenta do lado mais fraco, Kalid Ithum foi condenado em dois processos por fraude e desvio de US$ 260 mil do MP e do HMNY num evento em 2018 em Coachela. Já Stacy Pikes que readquiriu a MoviePass, que registrou seu primeiro lucro na história em 2023.
Em síntese, a lição que fica do documentário é que os gestores brancos e de cabelos grisalhos com trânsito no circuito financeiro, que arruinaram a empresa, a conduziram como a montagm de uma peça de teatro que precisa de uma estrela, uma história e um acessório, no caso a Movie Pass ou de modo cinematografico, como na cena em que Thelma (Geena Davis) e Louise (Susan Sarandon), no filme de Ridley Scott, rodado em 1991, pisaram fundo no acelerador jogando o carro, nesse caso a MoviePass, no abismo. (Kleber Torres)
domingo, 14 de julho de 2024
Um rei que sabia que a fama é uma decomposição lenta e passageira
Um dos pais e talvez o verdadeiro Rei do Rock, Chuck Berry aliás Charles Edward Anderson Berry, para os íntimos, é o tema do documentário de Jon Brewer, com 103 minutos, lançado em 2019 e exibido recentemente pelo Bis, primeiro canal de televisão inteiramente dedicado à música no Brasil. O filme Chuck Berry revela a face humana, a inventividade, os dramas, perseguições, discriminação e até a decadência física de um das artistas incônicos que transitou do blues para o rock, ajudou a quebrar barreiras raciais, moldando o som com seus riffs geniais e transformando sua guitarra numa espécie de instrumento de percussão, além de influenciar decisivamente a atitude contestadora e a própria cultura do rock ‘n’ roll, mas deixando ao mesmo tempo um legado imortal que continua a inspirar músicos e os ouvintes até os dias hodiernos.
O filme que teve a participação de estrelas como Alice Cooper, Bruce Springsteen, Bo Didley, além dos Beatles, dos Rolling Stones, Jerry Lee Lewis, Paul McCartney, Keith Richards e Eric Clapton e outtros astros do rock, bem como da mulher do artista Themetta Sugss, que foi casada com ele por 69 anos para quem “quando ele chegava em casa era apenas o homem com quem tinha me casado” e os próprios filhos e netos que o viam como o homem Charles Edward Anderson Berry. Todos compartilham suas visões e perspectivas sobre o impacto e mesmo a influência do artista no mundo da música. O filme também inclui imagens de um show realizado em sua cidade natal, St. Louis, Missouri, durante seu aniversário de 60 anos, quando entra no palco em um vistoso cadillac vermelho.
Chuck Barry separava a sua carreira de astro pop e com a de pai e marido, ao mesmo tempo como empresário investia e construia imóveis – havia aprendido carpintaria com o pai - ou em projetos como um parque temático, que levou o seu sobrenome e tinha uma piscina em forma de guitarra. O empreendimento acabou depredado depois de um show contratado por terceiros que não pagaram ao artista que se apresentaria. Degostoso o artista abandonou o projeto e deixou tudo se deteriorar com o tempo: os prédios, os veículos, como o ônibus que usava para turnês nos Estados Unidos e outros equipamentos, inclusive tratores, transformados em sucata.
O artista também nos legou músicas curtas, que em média com três minutos de duração contavam histórias que tocavam ao público jovem, falando de carros potentes e velozes, com asas ou sobre paqueras e a vida dos adolescentes, os ingredientes básicos das canções de um artista que encantava e fazia dançar brancos e negros, derrubando barreiras raciais antes mesmo das conquistas de Martin Luther King. Johnny B. Goode, cujo riff copia nota a nota o solo Ain’t thatr Just Like a Woman(1946), inetrpretada pelo guitarrista Carl Hogan, foi uma homenagem ao seu parceiro por várias décadas, o pianista Johnnie Johnson, com quem formou um trio. Descrito na música como um menino caipira do sul da Louisiana, e que saiu pelo mundo para se transformar num músico de sucesso.
Já Meybellene, um dos seus outros hits, tem como referência uma mulher que não pode ser real - cujo nome foi chupado de uma fábrica de cosméticos - , e que o viu do seu Ford V8. Como um artista completo – ele era compositor, cantor com uma voz não marcante como a de Elvis Presley, mas com uma dicção clara e que tinha como referência vocal Nat King Cole, além de encantar o público com seu rebolado e passos magistrais, que talvez tenham sido copiados do humorista Groucho Marx.
Em termos de inovação, Chuck Berry também se importalizou por seus riffs de guitarra icônicos -uma de suas marcas registradas - em músicas como Johnny B. Goode, Roll Over Beethoven, School Day ou Rock and Roll Music, que influenciaram gerações de músicos, complementados por letras líricas e tendo como pano de fundo a narrativa de histórias sobre vida cotidiana dos jovens americanos, sempre envolvendo carros e um romance, o que conquistou o gosto do público com um ritmo inebriante. Suas músicas foram gravadas por grandes nomes do rock, inclusive por bandas como os Beatles e os Rolling Stones.
O fato é que Chuck Barry foi um artista simplório, que na madureza fazia shows viajando sozinho, levando sua guitarra e a escova de dentes, mas só tocava em eventos cujos músicos – que nem sempre conhecia – fossem sindicalizados, para receber um cachê em espécie de US$ 10 mil por apresentação. No palco, o homem simples e vestido com roupas comuns se transformava num showman excepcional, impondo um estilo energético ao tocar sua guitarra com performances que influenciaram a muitos artistas, promovendo ao mesmo tempo audiências multirraciais onde brancos e negros dançavam no mesmo palco e no mesmo espaço.
Alice Cooper considera que Berry implantou o jeito de ser do rock and roll e por isso emerge como um dos guitarristas mais importante e influente da história da música, além de ter sido um elo fundamental de ligação entre o jazz, o blue e o rock. O ex-beatle Paul MaCartney, que foi um fã incondicional, o definiu no filme com apenas uma palavra : “um poeta.” Já a revista Time, uma das mais lidas pelos americanos estampou em sua capa o pedido de um astronauta americano solitário no espaço sideral: “mandem-me mais Chuck Barry”
Mas a carreira do artista teve altos e baixos, envolvendo processos e prisões. A primeira, ainda na adolescência quando foi acusado de roubo de um carro, usado para empurrar o seu potente carrro com asas o que acabou se transformando em música. Ele também passou quase dois anos na prisão no começo dos anos 1960 depois de ser acusado e considerado culpado por um crime federal, ao levar uma garota de 14 anos com a finalidade de se prostituir em outro estado.
Jé em 1990, muitas mulheres entraram com uma ação contra Barry, que as teria gravado no banheiro feminino do restaurante do cantor, St. Louis, onde residia com a família, o que pode ter sido uma armação de autoridades policiais brancas contra o artista e empresário negro. O artista também foi acusado de tráfico de drogas – maconha e cocaína - , com provas refutáveis, uma vez que a polícia havia encontrado beatas – restos de cigarros de maconha – num imóvel abandonado do roqueiro e também foi preso três dias após se apresentar na Casa Branca, numa exibição para o presidente dos Estados Unidos, acusado de sonegação fiscal. O fato é que muitas das acusações podem ter sido forjadas em função da cor do artista, o que fica implícito de certa forma no filme Chuck Barry.
O próprio diretor e produtor do filme, Jon Brewer, declarou em entrevista à revista Rolling Stone EUA, que enquanto desenvolvia o projeto do documentário, ele estava interessado em explorar “Como um artista negro tocou em uma rádio branca naqueles dias.” Ele destacou que, enquanto analisava os arquivos, aprendeu que “há tanta coisa registrada que não representa como ela realmente era. Um exemplo é quando aprendemos a razão para Berry ser conhecido por sua abordagem calculista em relação aos negócios e finanças. Ele tinha sido enganado por produtores e assessores de eventos- mas apenas uma vez”
O fato é que em função dos problemas e dificuldades enfrentadas ao longo da vida, Chuck Berry dizia: ‘nunca deixe o mesmo cachorro te morder duas vezes,’ e, para ter certeza que estava sendo pago, recebia sempre sua cota em dinheiro e antes de subir ao palco. O filme Chuck Barry teve sua estréia no Festival de Nashville revelando as diversas facetas de um artista que legou um grande patrimônio imobiliário para os seus descendentes, construído ao longo dos anos um empresário muito capacitado e um cuidadoso artesão, que também foi um dos pais e talvez o Rei do Rock, primeiro e único, que conheceu a a fama, a prisão e enfrentou a velhice e a decadência, esquecendo parte das letras das musicas que cantava em shows com idade avançada – sendo mesmo assim aplaudido apoteoricamente pelo público – e acometido com perda crescente da audição, o que é natural para um artista que dizia que “a fama é decomposição lenta e passará” e olhe que os latinos ensivavam que sic transit gloria mundi lembrando a nós reles mortais que a gloria do mundo é passageira. (Kleber Torres)
quinta-feira, 4 de abril de 2024
O homem que descobriu a dimensão da eternidade através da música
Um gratificante passeio musical e histórico na vida e obra de Afredo da Rocha Viana Fiho, Pixiguinha, que viveu no período de 1897 a 1973, considerado um dos ícones e um dos pais da MPB, assim pode ser definido o filme “Pixinguinha, um homem carinhoso”, dirigido a quatro mãos por Denise Saraceni e Alan Fiterman. O filme também explora as coincidências históricas do seu nascimento em 23 de abril, dia de São Jorge e com relação à sua morte num sábado de Carnaval, no interior da Igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, o que metafóricamente seria o seu primeiro passo para a sua santificação.
O filme narra a vida do menino negro e de família humilde, que descobre a sua vocação musical e inicia uma escalada ao sucesso como compositor, arranjador, maestro, flautista e saxofonista. O roteiro inclui uma viagem à França em companhia dos Oito Batutas, que difundiram no continente europeu o samba e o choro no período de avanço do jazz e do ragtime, primeiro gênero musical autêntico norte-americano, que conquistava com sua sonoridade e ritmo uma dimensão global. A viagem à Europa também marca a descoberta do amor pelo músico brasileiro que nos legou composições como Carinhoso, Glória, Lamentos, Um a Zero e o antológico Urubu.
“Pixinguinha : um homem carinhoso” não só procura traçar a trajetória do artista, interpretado com esmero por Seu Jorge, bem como os seus dramas existenciais, a paixão pela mulher Betti (Taís Araújo), a adoção de um garoto, além das dificuldades de um músico para quitar dívidas com a casa própria ou tendo de se desfazer de um carro para quitar débitos pessoais num período de decadência. O filme trata superficiamente do envolvimento de Pixiguinha com o álcool e sobre os motivos que o levaram a trocar a flauta pelo saxofone.
Um outro destaque fica para a sequência final do fime mostrando o que ocorreu logo após a morte de Pixinguinha, homenageado pela banda de Ipanema, cujos integrantes se concentraram em frente a Igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, onde estava o corpo do artista, cantando Carinhoso. Essa é uma tradição carnavalesca que tem se repetido ao longo dos anos.
A obra retrata as dificuldades de ascensão de um artista negro numa sociedade racialmente dividida e também entre ricos e pobres sem acesso à incusão social, que copiava os ditames e os modelos da Europa e Estados Unidos. Pixiguinha destaca a contribuição da cutura negra à MPB e a integração cutural através da arte, em especia à musica. Cabe destaque a peformances antólogicas do flautista Pixiguinha em Carinhoso, considerada como uma espécie de hino popular brasieiro e que ganhou uma dimensão internacional. Em sintese, “Pixiguinha : um homem carinhoso” resgata o legado musical de um artista imortal, que transitou do samba para o maxixe, o choro, passando pelo jazz e pela bossa nova singrando rumo à eternidade. (Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título : Pixinguinha : um homem carinhoso
Direção : Denise Saraceni e Allan Fiterman
Roteiro : Daniela Dias e Denise Saraceni
Elenco: Seu Jorge, Taís Araújo, Miton Gonçalves, Danio Ferreira, Jhama. Tuca Andrade, Pretinho da Serrinha e Ângelo Fávio
Fotografia : Jean Benoit Crepon
Música : Cristovão Barros
Gênero : Musical / Drama
2021
1 hora e 41 minutos
Brasil
Cor
terça-feira, 19 de março de 2024
Uma experiência radical na busca da inguagem e da forma para uma outra dimensão do terror
Considerado um trabalho experimental inovador, o canadense “Skinamarink: Canção de Ninar”, dirigido e roteirizado por Kyle Edward Ball, tem toda a ação num ritmo vagaroso e apresenta uma estrutura narrativa fragmentada, com contornos impressionistas a partir das imagens difusas ou do contraste de sombras e luzes, o que aponta para a busca de uma nova linguagem e de uma nova forma para o filme de terror. O filme também é uma incursão no universo do suspense e da fantasia através de uma abordagem inovadora no gênero, mas que se tornou viral circulando através do Reddit, TikTok e do YouTube após ser exibido em festivais de cinema na segunda metade de 2022, ano do seu lançamento no mercado global.
A narrativa envolve dois irmãos, Kaylee (Dale Rose Tetreaut), de seis anos, e Kevin (Lucas Paul), de quatro, que acordam numa manhã de 1995 e descobrem que os pais simplesmente sumiram. Em paralelo, como complicador, todas as portas e janelas de casa – um prédio com dois andares e um porão - desapareceram. No meio de imagens difusas, como num fime amador, uma das crianças pergunta a um amigo invisível se ele está se escondendo e conta lentamente até três.
Sem imagens de personagens, como ocorre em quase todo o fime, emerge a voz do pai (Ross Paul) narrando no telefone um suposto acidente domestico, dizendo que o filho caiu e bateu a cabeça. Já a criança chama várias vezes pelo pai, mas sem resposta. A televisão é ligada e começa a exibir antigas fitas de vídeo com desenhos animados, em paralelo fatos estranhos começam a ocorrer no interior do imóvel. Uma das crianças diz que não consegue dormir com as luzes acesas.
Em seguida Kaylee chama Kevin e pergunta se não está na hora de levantar. Os dois começam a procurar pelos pais e uma voz feminina explica que ele pode ter saído com a mamãe. Kaylee diz que não quer falar sobre a mãe. Ao mesmo tempo coisas misteriosas começam a ocorrer com desaparecimento de objetos diversos no interior do imóvel, como por exemplo o vaso sanitário. No andar superior luzes acendem e apagam, enquanto uma voz masculina diz à menina para que suba as escadas, ela obedece e não vê nada depois de orientada para olhar até debaixo da cama.
Uma voz materna diz a Keylee e a Kevin, que ela e o pai o amam. Depois, a mesma mulher manda Kaylee fechar os ohos e em seguida manda a menina voltar para o andar inferior. Ela leva suco para o irmão, enquanto os objetos são movidos diante a televisão. A dúvida para o espectador é se existe alguém na casa ou se há uma força sobrenatural atuando e cuidando das crianças.
O fato é que“Skinamarink” compartilha uma série de semelhanças com o cinema impressionista. Nele há o uso inovador de recursos visuais e sonoros para criar uma atmosfera de medo e desconforto, a partir do contraste de luzes e sombras, o que reforça a sua estrutrura experimental e inovadora complementada pela ausência visual dos personagens, como foco na participação de vozes difusas, deixando fluir a imaginação do espectador.
Numa outra sequência, Kevin é chamado pela voz misteriosa a ir para o porão. E Kaylee, com medo, chama pelo irmão e diz que está se sentindo estranha. Emerge a imagem difusa de uma muher e o som de passos correndo pea casa, enquanto só brinquedos das crfianas são desarrumados, uma outra voz diz a Kevin para que durma. Nesse interim, os binquedos voltam para a sala e a voz do homem informa que ele quer brincar. Kevin chora e desperta ofegamte quando é acordado pela voz, que lhe diz que pode fazer quaquer coisa, demonstrando sua força e poder sobrenatural.
A voz diz a Kaylee não o obedeceu e lhe disse que preferia ficar com o pai, por isso ele tapou a sua boca . Depois, o homem chama Kevin e promete protegê-lo. Num registro, 572 dias após o início do drama, os brinquedos se acumulam na parede e no teto, Kevin chama Keylee e pergunta se algo alegra ao misterioso personagem que o manda dormir, mas não responde quando perguntado pela criança qual o seu nome.
Esse hiato tempo informado no fime pode oferecer várias explicações numa anáise para o espectador. A primeira seria a possibiidade de que Kevin havia entrado em coma após cair da escada num acidente doméstico. Nesse interim, o que se passa no fime e que o assustaram e à sua irmã seriam as experiências no subconsciente da criança durante o coma, quando as pessoas ouvem e têm em muitos casos consciência do que se passa no seu entorno.
Outra visão implicita, seria a de que uma entidade sobrenatural estaria atuando na casa e poderia manipular o tempo e o espaço afetando vidas humanas e mudando inclusive a essência das coisas, muito além das leis da própria física. Assim, o período de tempo da narrativa representa o tempo que passou entre o desaparecimento do pai de Kevin e o momento em que ele vê a sua face difusa, ou seja, quando acorda do coma.
O nome do filme “Skinamarink”, que não tem nem significado espeecífico e nem tradução para o português, pega como referência uma canção de ninar que se tornou muito popular no início do século XX nos Estados Unidos e que foi escrita para uma produção da Broadway, “The Echo”, apresentada em 1910. Na versão brasileira o título “Skinamarink: Canção de Ninar”, evoca uma canção de ninar que foi transformada num pesadelo que transita entre o real e o sobrenatural.
Como obra experimental, se observa em “Skinamarink”a construção de uma história minimalista que associa os múltiplos contrastes entre a ausência de personagens, com sons do ambiente e imagens difusas entre luzes e sombras, o que nos remete a sequências nostálgicas e a filmes amadores. Tudo isso gera uma atmosfera instigante, que deixa os espectadores desorientados e desconectados sobre o próprio enredo da história com as suas multiplas alternativas, o que dificulta a compreensão da obra e deve alertar sobre os múltiplos caminhos da arte e da invenção ou não. (Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título : Skinamarink / Skinamarink : Canção de Ninar
Direção e roteiro : Kyle Edward Ball
Elenco : Lucas Paul, Dali Rose Tetreault, Ross Paul e Jaime Hill
Fotografia : Jamie Mcrae
Origem : Canadá
2022
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024
O humor eterno de um trapalhão que transitou no samba, na televisão e no cinema
O humor eterno de um trapalhão que transitou no samba, televisão e no cinema
Para quem não estava macetando no Carnaval e nem preocupado com o apocalipse ou mesmo o arrebatamento do juízo final, uma opção de lazer com humor e samba ficou para o documentário “Mussum, o Filme do Cacildis”(2018), exibido pelo Cine Brasil e biográfico “Mussum, o Filmis”(2023), no TV Brasil Play, que pode ser acessado através de streaming. O primeiro, foi um documentário narrado por Lázaro Ramos, assinado por Suzanna Lira, que dirigiu Torre das Donzelas e Clara Estrela e o segundo, de Silvio Guindane, a partir de um livro do escritor e roteirista Juliano Barreto.
Em essência, “Mussum, um Filme do Cacildis”, é um documentário sobre a vida e a carreira do humorista e sambista Antônio Carlos Bernardo Gomes, mais conhecido como Mussum, que morreu aos 53 anos após um transplante de coração. O filme começa com uma explicação didática sobre forever, que em inglês significa para sempre e que dá a dimensão eterna de um artista. Mas forevis, da linguagem mussunica com seus is nos finais das palavras, é outra coisa, definindo inclusive uma parte retrofuricular do corpo que a terra há de comer.
Como artista Mussum foi humorista e sambista, destacando-se um dos integrantes do grupo Os Trapalhões, que fez muito sucesso na televisão brasileira nas décadas de 1970 e 1980, falando a linguagem do povo e mostrando Didi, como um nordestino sofrido e esperto; Dedé, como um galã da periferia; Zacarias, um mineirinho caipira e Mussum, como um malandro mangueirense e um carioca do morro. Ele também foi vocalista do grupo Os Originais do Samba, que misturava samba e humor em suas músicas, como a do antológico assassinato do camarão.
“Mussum, um Filme do Cacildis” é narrado com depoimentos de familiares, amigos e colegas de trabalho de Mussum, além de imagens de arquivo e cenas de seus filmes e programas. O filme também revela uma outra face do artista: o lado mais sério e engajado de Mussum, que lutou contra o racismo e a desigualdade social, usando o humor como uma forma de resistência e de afirmação da sua identidade negra.
Baseado no livro “Mussum Forévis – Samba, Mé e Trapalhões”, de Juliano Barreto, que assina o roteiro de “Mussum, o Filmis” (1923), dirigido por Silvio Guindane e estrelado por Aílton Graça como Mussum. O filme, premiado no 51º Ferstival de Cinema de Gramado, abocanhando seis prêmios e uma menão honrosa – como melhor filme, melhor ator, melhor atriz e melhor ator coadjuvante, além da melhor trilha musical e melhor filme no júri popular- narrando a trajetória do artista desde a infância pobre, sua formação escolar, carreira miitar, sua ligação com a Mangueira, o Flamengo e o sucesso de Antônio Carlos Bernardes Gomes, integrante do grupo Os Originais do Samba e de Os Trapalhões.
O filme resgata a sua trajetória como sambista e passista, além de gags do humorista e cenas antológicas dos Trapalhões na televisão e no cinema, registrando a participação arttística de Carlinhos do Reco-Reco rebatizado como Mussum por Grande Otelo. Também mostra a sua relação com a mãe Malvina (Cacau Protásio) e com os seis filhos, revelando como um menino do morro chegou ao estrealato e hoje refulge com seu humor na eternidade através do cinema e dos livros.(Kleber Torres)
Ficha técnica :
Título : Mussum, o filmis
Direção : Silvio Guindane
Roteiro : Juliano Barreto
Elenco : Ailton Graça,Vanderlei Bernardino,Neusa Borges, Gero Camilo, Jeniffer Dias, Késia Estácio, Cinara Leal, Thawan Lucas, Yuri Marçal, Cacau Protásio,Felipe Rocha, Hugo Germano, Gustavo Nader, Christiano Torreão
Diretor de Fotografia : Nonato Estrela
Música : Max Castro
Colorido
2022
Brasil
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024
As metáforas e símbolos da luta pela vida em um mundo distópico
As metáforas e símbolos da luta pela vida em um mundo distópico
Como nos filmes policiais do tipo noir, com uma atmosfera sombria, ambientação urbana, temática criminal e anti-heróis, a história de “Blade Runner – O Caçador de Andróides”(1982), de Ridey Scott, considerado um clássico da ficção científica, é narrada na terceira pessoa, a partir do ponto de vista de Rick Deckard (Harrison Ford). Ele é um caçador de andróides convocado para recolhimento, ou seja, eliminação sumária de quatro replicantes mais avançados, do tipo Nexus 6, considerados de útima geração, que escaparam de uma colônia espacial, cometeram uma série de assassinatos e voltaram para a Terra em busca do seu criador. O filme discute através de metáforas, diálogos instigantes e símbolos em profusão a questão da vida e a essência do medo, além de revelar as incertezas existenciais do amanhã e da própria morte.
Blade Runner também revela o ponto de vista de Roy Batty (Rutger Hauer), um dos villões icônicos do cinema, que lidera os replicantes na busca para encontrar o seu criador para tentar prolongar a sua vida útil, que tem a duração limitada a um período médio de quatro anos. Mostrando como cenário uma Los Angeles futurista e decadente, a partir de novembro de 2019, o filme une técnicas expressionistas acentuadas pelo contraste entre luzes e sombras, tendo como pano de fundo uma atmosfera sombria, complementada com uma trilha sonora de música eletrônica de Vangelis, com uma mistura jazz, sintetizadores e elementos neoclássicos.
O filme, baseado na novela “Do Androids Dream of Eletric Sheep” (Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas”, de Philip K. Dick, sobre um futuro distópico em que humanos convivem com replicantes num mundo caótico e em decadência apesar dos avanços e dos recursos tecnológicos disponíveis. Bade Runner não só utiliza efeitos fotográficos especiais, como também revela uma série de símbolos e metáforas que podem servir de pistas ao espectador para a compreensão da obra e mesmo com relação a mensagens e temas específicos, a exemplo do olho que emerge nas sequências iniciais ou mesmo do unicórnio, da chuva e os origamis.
Tudo começa quando um ser humano artificial (replicante) detido pela polícia, Leon (Brion James) se rebela num teste de rotina e mata o seu examinador, que faz uma série de perguntas encadeadas para checar suas reações e identificar se o mesmo seria ou não, um ser humano. A crime faz com que o detetive Rick Deckard, um velho caçador de andróides, seja convocado por um oficial de polícia para a caça de um grupo de quatro replicantes que estão à solta nas ruas de Los Angeles, depois de sequestrarem uma nave que ia a uma colônia espacial, matando todos os passageiros e tripulantes.
O poicial destaca para Deckard que quem não é da polícia, é da escória e estaria fora do sistema. Ele também apresenta os dossiês com informações do líder da rebelião Roy Batty, bem como de Leon, de Zhora (Joanna Cassidy), criados para trabalhos cansativos na mineração, não adequados aos humanos e Pris (Daryl Hannah), projetada como um modelo básico e prazer.
No preparo para sua nova missão, Rick Deckard entrevista Rachel (Sean Young), uma suposta repicante, que questiona ao policial se ele não havia cometido erros ao confundir humanos com andróides. O teste em si envolve uma série de 20 a 30 perguntas com referências cruzadas, que devem ser respondidas de forma simples e objetiva. Ele acaba suspeitando que Raquel não seja, talvez, uma replicante, mas a dúvida fica no ar.
Na tentativa de chegar ao seu criador, Roy encontra um técnico que produz os olhos dos replicantes e este lhe indica J.F.Sebastian (William Sanderson), especialista em robótica da Tyrell, empresa fabricante de andróides em laboratório e que opera em escala industrial. Ao mesmo tempo, Rick Deckard localiza Pris numa casa noturna, a quem se apresenta como integrante de uma comissão de investigação de assuntos éticos, ou seja, assédio moral, mas acaba matando-a com um tiro nas costas após uma perseguição nas ruas de LA.
Observado em ação por Leon, o policial acaba atacado por ele dizendo: “acorde, é hora de morrer”. Leon fala sobre a essência do medo e, depois de uma luta intensa, acaba morto por Rick Deckard. Já Sebastian, que sofre da síndrome de Maqtusaém, a qual provoca o seu envelhecimento precoce, constata, no seu encontro com Roy e Zhora, que eles são diferentes e perfeitos, uma caracteristica do Nexus 6, a útima geração de replicantes. Roy lhe explica que eles não são computadores criados em laboratórios, mas seres vivos que querem a duração de suas vidas ampliadas e ele o leva ao desenvolvedor do projeto com quem joga xadrez online regularmente.
No encontro com Roy, o doutor Eldon Tyrell, cientista responsável pela produção de andróides e lider do grupo empresarial que leva o seu sobrenome, pergunta qual é o problema que aflige ao replicante que responde: “a morte. Eu quero viver”. O cientista contrargumenta mostrando que o código genético não pode ser corrigido e os riscos decorrentes deste procedimento, o que envolve um debate acadêmico, observando: “você foi feito da melhor forma possível. Você é o fiho pródigo, é o prêmio... comemore o seu tempo. Você fez coisas extraordinárias, aproveite a vida”. Num gesto edipiano, Roy acaba cegando com as mãos e matando ao seu criador.
Na sequência,Rick Deckard acaba eliminando Zhora e enfrenta a Roy numa luta violenta, mas decisiva. Inexplicavelmente, num lampejo humano, o replicante que confessa ter visto coisa que os humanos não acreditariam, acaba salvando o policial evitando que o mesmo caísse do prédio onde lutavam e acaba morrendo devido à extinção do seu ciclo de vida. Deckard conta quer não sabe porque foi salvo pelo andróide, talvez o seja porque ele amou a vida que queria viver. Talvez suspeitando que também seja um replicante, ele acaba indagando sobre quem é, para onde vai, ou quanto tempo de vida tem, mas lamentando, ser uma pena que ele (Roy) não vai viver, mas afinal, quem vive?
Ao reencontrar com Raquel, ela questiona Deckard que se fugisse para o norte, ela seria seguida pelo policial ao que o mesmo respondeu: “não, porque você salvou a minha vida...Mas alguém iria”. Ela também indaga sobre os arquivos existentes sobre ela, com data de oigem, morfologia e outros dados pessoais, ao que o policial responde que são informações confidenciais. Ele também comenta que adora música e não sabia que ela tocava.
Mesmo retrantando um mundo distópico e sombrio, Blade Ruinner tem na primeira das muitas cópias conhecidas um final feliz, com o policial e Raquel fugindo para uma terra bafejada pelo sol. Em tempo: quando os dois estão deixando LA, Deckard acha um origami de unicórnio, o que reforça a dúvida no ar de que ele também seja um replicante.
Os críticos consideram que existem pelo menos três versões básicas do filme : a versão dos produtores, que foi aos cinemas em 1982; a versão do diretor, que foi lançada dez anos depois, e a versão final, editada pelo próprio Ridley Scott em 2007, com a sua versão pessoal. Mas ao que consta existem sete versões ao ongo do tempo. Ao espectador, cabe observar que cada versão apresenta diferenças pontuais na narração, mas, no final das contas e em essência, as mudanças de alguns detalhes da história não alteram a narrativa e o enredo, mostrando que existem diversas formas para narração e que são infinitos os limites da criação ou mesmo para fruição de uma obra de arte. Em 2017, o filme ganhou uma sequência Blade Runner 2049, dirigida por Denis Villeneuve e estrelada por Ryan Gosling e o próprio Harrison Ford, já envelhecido, 30 anos após o início da distopia e revelando um novo olhar sobre o caçador de andróides, quando o policial encarregado de caçar e eliminar replicantes levanta novas pistas sobre um segredo que pode mudar o destino da humanidade ou da própria história.
Em essência, Blade Runner nos alerta sobre o futuro e os avanços tecnológicos, em função dos perigos do consumismo exagerado, da exploração intensiva dos recursos naturais e com o aumento da desigualdade social, gerando concentração da renda. O fime mostra uma Los Angeles poluída, superpovoada e violenta, onde os animais estão em extintos e as pessoas vivem em condições precárias.
O filme também envolve um debate existencial sobre a função de ser e estar (vivo) num mundo com seus contrastes e circunstâncias, ampliando o debate sobre o que nos torna humanos e o que nos diferencia dos andróides, que não têm uma história de vida e ganham referenciais históricos através de informações fotográficas de outros viventes, que foram simplesmente implantadas em suas memórias.
Blade Runner também nos faz refletir sobre o valor da vida e o respeito pelo outro, e quem sabe, sobre o amor ao próximo ou mesmo ao distante quando a trama envolve seres humanos e andróides, isso nnum tempo em que a inteligência artificial ganha vida, assume protagonismos e dá novos contornos a este vasto universo com todas as possibilidades. Todo este conjunto de fatores complexos nos convida a pensar sobre o papel da tecnologia e as suas consequências, afinal, neste contexto a memória, a história e a linguagem são construídas, manipuladas e fragmentadas, podendo ser implantadas ou simpesmente deletadas, colocando em cheque a própria realidade e a existência de cada um de nós como seres efêmeros e transitórios. (Kleber Torres)
Ficha técnica :
Título : Blade Runner (Bade Runner – O Caçador de Andróides)
Direção : Ridley Scott
Roteiro : Hampton Fancher e David Peoples
Elenco : Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh, Daryl Hannah, William Sanderson, Brion James, Rian Gosling, Joe Turkel, Joanna Cassidy
Diretor de fotografia : Jordan Cronemweth
Visual Futurista : Syd Mead
Supervisão de efeitos fotográficos especiais: Douglas Trumbull e Richard Yoricich
Music : Vangelies
Origem : Estados Unidos e Hong Kong
Colorido
2 h e 3 minutos
1982
quarta-feira, 10 de janeiro de 2024
O que fazer quando o tempo se transforma num bem de consumo?
O tempo é o bem mais precioso do universo e esta é uma das lições do filme “O Destino de Júpiter” (Jupiter Ascending), uma obra de ficção científica, aventura e ação intergalática dirigido e roteirizado pelas irmãs Lily e Lana Wachowski, que também assinaram a série Matrix, considerado um dos maiores clássicos sci-fi da história do cinema. O enredo tem como foco a história de Júpiter Jones (Mila Kunis), que leva o nome do mais belo planeta do sistema solar, filha de uma família de origem russa, que vive modestamente como uma empregada doméstica em Chicago, nos Estados Unidos e, é ao mesmo tempo, numa espécie de universo paralelo, descendente de uma linhagem nobre interestelar, o que a coloca como sucessora natural do trono como presumível Rainha do Universo.
No início do filme, a personagem se autodefine como uma alienígena em situação irregular – o que seria uma espécie de imigrante sem passaporte -, nascida sob o signo de leão, com Jupiter a 23 graus, o que a torna destinada à grandeza. Ao tentar conseguir dinheiro vendendo óvulos numa clínica para a compra de um telescópio similar ao de seu pai, uma astrônomo amador que morreu durante um assalto ao tentar proteger o equipamento, ela recebe a proteção de Caine Wise (Channing Tatum), um ex-militar alterado geneticamente que tem por missão protegê-la a todo custo e levá-la para assumir seu lugar de direito em outro planeta fora do sistema solar.
Wise explica a Júpiter que a terra não é o único planeta habitável no universo e que há vida inteligente na galáxia. Ele explica ainda, que a raça humana foi desenvolvida em outro planeta há um bilhão de anos e a Terra foi semeada pela Indústria Abrasax, controlada por uma família do mesmo nome, há cerca de 100 mil anos gerando uma nova era da genética, um processo continuo de manipulação de gens em que as células danificadas são substituídas por novas, o que torna o planeta dos terráqueos uma parte mínima de uma indústria ampla e complexa de genes que opera numa escala interplanetária.
Fica evidente no filme, que só há um recurso fundamental que vale a pena lutar e morrer: o tempo, que aparece como o bem mais precioso numa dimensão universal. “O Destino de Júpiter” embute em sua essência uma crítica ao consumismo da nossa civlização e à posse de bens , o que leva o espectador a refletir sobre hábitos de consumo e a valorização de posse de recursos materiais. A obra também discute sobre a questão do poder político e econômico, bem como das comunidades, grupos com interesses difusos, corporações, a família ou mesmo o bem-estar coletivo, sem deixar de lado a essência dos valores e da transvalorização.
“O Destino de Júpiter” evidencia ainda questionamentos sobre a burocracia – crítica implícita para a posse da nova Rainha do Universo – negociada através de um advogado ciborgue, que também faz referências à corrupção que estaria fora do seu escopo. Há ainda referências ao papel da mulher na sociedade, mesmo quando uma proletária que faz limpeza de sanitários se descobre herdeira de uma linhagem nobre intergalática, o que coloca em pauta questões como as mudanças sociais e o enfrentamento de desafios e mesmo da adversidade.
Tudo isso também passa pela exploração econômica através dos monopólios e pela desigualdade para promoção de uma efetiva justiça social, o que coloca na agenda do processo temas como a coragem e a resiliência do indivíduo na eterna luta pela sobrevivência dos seres vivos.
De certa forma o filme compartilha algumas semelhanças com “Matrix”, uma outra obra assinada pelas irmãs Wachowski, uma vez que ambos exploram o fato de que a realidade como a conhecemos pode ser uma ilusão controlada por forças poderosas. Nos dois filmes os personagens centrais são pessoas comuns como Neo, um programador de computadores escolhido para libertar a humanidade num universo controlado por máquinas e Júpiter, uma faxineira que acaba arrebatada para um universo paralelo por ser uma reencarnação de uma rainha intergalática. Ambos têm uma missão especial no universo e um destino transcendente.
Outro ponto em comum nos dois filmes é a crítica política aos sistemas dominantes. Em “Matrix” a humanidade é submetida ao domínio de máquinas através de uma realidade virtual, o que gera uma revolução, enquanto no caso de “O Destino de Júpiter” o planeta foi terraformado para suportar um ecossistema com seres vivos como parte de uma grande indústria cósmica, que operam ativos genéticos de homens e animais.
Há que atribua ao filme – que é rico em efeitos especiais e lutas espaciais - influência parcial da “Odisseia”, de Homero, um clássico da literatura universal, tendo como referência as peripécias de Ulisses na Grécia Antiga ou com o conto de fadas francês “A Bela e a Fera”, de Gabriellle-Suzanne Barbot, o que é desacreditado por alguns críticos, os quais também não veem similaridade entre os mesmos. São risíveis alguns diálogos que escapam ao humor refinado, como por exemplo, quando a rainha se declara apaixonada pelo seu protetor, o qual tem no seu DNA gens de cachorros, um animal que diz amar.
Em outra cena, o tabelião da corte estelar dá os parabéns e pêsames à nova rainha, prevendo as possivelmente dificuldades que iria enfrentar no confronto com os Abrasax: Balem ( Eddie Redmayne), Titus (Douglas Booth) e Kalique (Toppence Middleton), que formam uma família disfuncional e com estratégias conflitantes no controle dos seus negócios monopolistas. O próprio Titus diz em determinado momento, que gosta das próprias mentiras que conta.
Em essência, ao criar vidas e destruí-las em função de interesses econômicos, a família e conglomerado Abrasax define como prioridade de negócio a geração e maximização de lucros, como acontece com os demais empreendimentos econômicos. Eles ensinam também com relação ao consumo, que viver é consumir e os seres humanos são consumidores vorazes vivendo num mundo e num universo em que os recursos naturais são escassos, inclusive o tempo, que aparentemente estaria fora deste contexto por não ter uma essência física como os minerais, a água e o ar, que se transformam em capital inclusive especulativo. Mas seria está a única regra e solução da equação do jogo da vida? (Kleber Torres)
Ficha técnica:
Título : O Destino de Júpiter (Jupiter Ascending)
Direção e Roteiro : Lily Wachowsky e Lana Wachowsky
Elenco : Mila Kunis, Channing Tattum, Sean Bean, Doona Bae, Nikki Amuka-Bird, Maria Doyle Kennedy, Christina Cole, Eddie Redmayne, Douglas Booth, Tuppence Middleton, Frog Stone, Arion Bakare, Ramon Tikaram e Nicholas Newman
Fotografia: John Toll
Música: Michael Giacchino
Edição: Alexander Berner
Efeitos visuais : Dan Glass
2015
Estados Unidos
2h07minutos
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